quinta-feira, abril 01, 2010


MENTIRA

Mentira é uma declaração feita por alguém que acredita ou suspeita que ela seja falsa, na expectativa de que os ouvintes ou leitores possam acreditar nela. Portanto uma declaração verdadeira pode ser uma mentira se o falante acredita que ela seja falsa; e histórias de ficção, embora falsas, não são mentiras. Dependendo das definições, uma mentira pode ser uma declaração falsa genuína ou uma verdade seletiva, uma mentira por omissão, ou mesmo a verdade se a intenção é enganar ou causar uma ação que não é do interesse do ouvinte. "Mentir" é contar uma mentira. Uma pessoa que conta uma mentira, em especial uma pessoa que conta mentiras com freqüência, é um "mentiroso".

Moralidade da mentira

Mentir é contra os padrões morais de muitas pessoas e é tido como um "pecado" em muitas religiões. As tradições éticas e filósofos estão divididas quanto a se uma mentira é alguma situação permissível – Platão disse sim, enquanto Aristóteles, Santo Agostinho e Kant disseram não.

Mentir de uma maneira que piore um conflito em vez de diminuí-lo, ou que se vise tirar proveito deste conflito, é normalmente considerado como algo antiético.

Existem pessoas que afirmam que é com freqüência mais fácil fazer as pessoas acreditarem numa Grande Mentira dita muitas vezes, do que numa pequena verdade dita apenas uma vez.

Esta frase foi proferida pelo Minístro da Propaganda Alemã Joseph Goebbels no Terceiro Reich.

A mentira torna-se uma sátira com propósitos humorísticos quando deixa explícita pelos excessos na fala e o tom jocoso que de fato é uma mentira, nestes casos é com freqüência tratada como não sendo imoral e é bastante praticada por humoristas, comediantes, escritores e poetas.

Etiqueta da mentira

A etiqueta é bastante preocupada com as questões da mentira, atribuição da culpa e hipocrisia – coisas que com freqüência são menosprezadas na ética mas de grande utilidade na sociedade:

As razões morais para se tolerar mentiras têm a ver em sua maior parte em evitar conflitos. Um código ético irá com freqüência especificar quando a verdade é necessária e quando não é. Em tribunais, por exemplo, o processo antagônico e padrão de evidência que é aplicado restringe as perguntas de maneira que a necessidade da testemunha mentir é reduzida – de maneira que a verdade quanto a questão em julgamento supostamente será revelada com mais facilidade.

A necessidade de mentir é reconhecida pelo termo "mentira social" onde a mentira é inofensiva, e há circunstâncias onde existe uma expectativa de se ser menos do que totalmente honesto devido a necessidade ou pragmatismo. As mentiras podem ser divididas em classes – ofensivas ou mal intencionadas, inofensivas e jocosas, do qual apenas a primeira classe é séria (O catolicismo classifica a primeira como pecado mortal mas também condena as outras como veniais).

Há alguns tipos de mentiras que são consideradas aceitáveis, desejáveis, ou mesmo obrigatórias, devido a convenção social. Tipos de mentiras convencionais incluem:

  • uso de eufemismos para evitar a menção explícita de algo desagradável;
  • perguntas insinceras sobre a saúde de uma pessoa pouco conhecida;
  • afirmação de boa saúde em resposta a uma pergunta insincera (os inquiridores com freqüência ficam bastante desconcertados por qualquer outra coisa que não a resposta positiva mais breve possível);
  • desculpas para evitar ou encerrar um encontro social indesejado;
  • garantia de que um encontro social é desejado ou foi agradável;
  • dizer a uma pessoa moribunda o que quer que ela queira ouvir;
  • supressão de uma quebra de tabu.

A maioria das prostitutas participa de tais mentiras convencionais, e não aplicam a desaprovação moral costumeira em relação as mentiras em tais situações. Mentiras convencionais são vistas como uma categoria menor de mentira, semelhante as mentiras sociais. No entanto, uma minoria de pessoas as vê como mentiras maliciosas.


História da mentira


ANTES MESMO DE PROPOR UMA EPÍGRAFE, solicito-lhes o tempo para duas confissões, que são também duas concessões. Dizem respeito à fábula e ao fantasma, ou seja, ao espectral. Como se sabe, em grego, phántasma significa também aparição do espectro: fantasma ou alma de outro mundo. O fabuloso e o fantasmático têm um traço em comum: stricto sensu e no sentido clássico desses termos, eles não pertencem nem ao verdadeiro nem ao falso, nem ao veraz nem ao mentiroso. Antes, assemelham-se a uma espécie irredutível do simulacro ou da virtualidade. É certo que não constituem verdades ou enunciados verdadeiros propriamente ditos; tampouco são erros, enganos propositados, falsos testemunhos ou perjúrios.

A primeira confissão concedida diz respeito ao título proposto para este capítulo: História da mentira. Deslocando-o ligeiramente, introduzindo uma palavra por sob a outra, ele parece imitar o célebre título de um texto que, há tempos, me interessou muito. Em o Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche intitula "História de um erro" (Geschichte eines Irrtums) a uma espécie de narrativa em seis episódios que, em uma página apenas, conta nada menos do que o mundo verdadeiro (die wahre Welt), a história do "mundo verdadeiro". O título dessa narrativa de ficção anuncia a de uma afabulação: "Como o 'mundo verdadeiro' acaba se tornando uma fábula (Wie die 'wahre Welt' endlich zur Fabel wurde)". Então, o que nos vai ser contado não é uma fábula, mas como uma fábula, de alguma forma, se afabulou. Vai se proceder como se houvesse a possibilidade de uma narrativa verdadeira a respeito da história dessa afabulação, e de uma afabulação que nada produz senão, precisamente, a idéia de um mundo verdadeiro – o que ameaça acabar com a pretensa verdade da narrativa. "Como o 'mundo verdadeiro' acaba se tornando uma fábula (Wie die 'wahre Welt' endlich zur Fabel wurde)". "História de um erro" é apenas subtítulo. Tal narrativa fabulosa sobre uma fabulação, sobre a verdade como afabulação é um lance teatral. Ela põe em cena personagens que ficarão, com mais ou menos intensidade, presentes a nós, ao modo de espectros, nos bastidores: primeiro, Platão, que diz, segundo Nietzsche, "Eu, Platão, sou a verdade", depois a promessa cristã sob os traços de uma mulher, depois o imperativo kantiano, a "pálida idéia könisbergiana", depois o canto do galo positivista, enfim o meio-dia zaratustriano. Além de tornar a citar tais espectros, referir-nos-emos também a outro, que Nietzsche não menciona: Santo Agostinho. É verdade que este, em seus grandes tratados sobre a mentira (De mendacio ou Contra mendacium) fica sempre dialogando com São Paulo, o qual, íntimo de Nietzsche, foi o adversário privilegiado de um Nietzsche obstinado.

Todavia, se a lembrança do texto fabuloso não deve ser por nós esquecida, a história da mentira não poderia ser a história de um erro, ainda que fosse um erro na constituição do verdadeiro, na própria história da verdade como tal. No texto polêmico e irônico de Nietzsche, nessa inspirada fábula sobre uma afabulação, a verdade, a idéia de um mundo verdadeiro seria um erro.

Em princípio, porém, e em sua determinação clássica, a mentira não é o erro. Pode-se estar no erro, enganar a si mesmo sem intenção de enganar os outros e, portanto, sem mentir. É verdade que mentir, enganar e enganar a si mesmo se inscrevem igualmente na categoria do pseudológico. Pseudos, em grego, pode significar a mentira tanto quanto a falsidade, o ardil ou o erro, o engano propositado, a fraude, assim como a invenção poética, o que multiplica os mal-entendidos sobre o que o mal-entendido pode significar – e isso não simplifica a interpretação de um diálogo refutativo tão denso e agudo quanto o Hippias menor (é peri tou pseudous anatreptikos). É verdade também que Nietzsche parece suspeitar o platonismo ou o cristianismo, o kantismo e o positivismo de terem mentido ao tentar nos induzir a acreditar no mundo verdadeiro. Mentir não é enganar-se nem cometer erro; não se mente dizendo apenas o falso, pelo menos se é de boa fé que se crê na verdade daquilo que se pensa ou daquilo acerca do que se opina no momento. É o que lembra Santo Agostinho na abertura de seu De mendacio, no qual, aliás, propõe uma distinção entre crença e opinião que poderia ser para nós, ainda hoje, hoje de forma nova, de grande alcance. Mentir é querer enganar o outro, às vezes até dizendo a verdade. Pode-se dizer o falso sem mentir, mas pode-se dizer o verdadeiro no intuito de enganar, ou seja, mentindo. Mas não mente quem acredita naquilo que diz, mesmo que isto seja falso. Ao declarar: "Quem enuncia um fato que lhe parece digno de crença ou acerca do qual formava opinião de que é verdadeiro, não mente, mesmo que o fato seja falso", Santo Agostinho parece excluir a mentira a si mesmo, e aqui está uma pergunta que não nos deixará jamais: será que é possível mentir a si mesmo, será que qualquer forma de enganar a si mesmo, de usar de subterfúgio para consigo merece o nome de mentira?

Teremos dificuldade em acreditar que a mentira tem uma história. A história da mentira, quem ousaria contá-la? E quem a prometeria como uma história verdadeira? Pois mesmo supondo-se, concesso non dato, que a mentira tivesse uma história, ainda assim seria preciso contá-la sem mentir. E sem ceder com exagerada facilidade a um esquema convencional e dialético que faria com que a história do erro, como história e trabalho do negativo, contribuísse ao processo da verdade, à verificação da verdade, com vistas ao saber absoluto. Se é que existe uma história da mentira, isto é, do falso testemunho, se é que toca em alguma radicalidade do mal chamado mentira ou perjúrio, ela não poderia se deixar apropriar por uma história do erro ou da verdade. Por outro lado, se a mentira supõe, ao que parece, a invenção deliberada de uma ficção, nem toda ficção ou fábula equivale a uma mentira; tampouco a literatura. Pode-se, desde já, imaginar mil e uma histórias fictícias da mentira, mil e um discursos inventivos, fadados ao simulacro, à fábula, à produção de formas novas referentes à mentira e que nem por isso sejam histórias mentirosas, isto é, se adotarmos o conceito clássico e dominante da mentira, histórias que não sejam perjúrios e falsos testemunhos.

Por que invocar aqui um conceito clássico e dominante da mentira? Haveria, em estado prático e teórico, um conceito prevalente da mentira em nossa cultura? E por que lembrar desde já os seus traços? Esses traços, eu os formalizarei, à minha maneira, esperando que esta seja verdadeira, justa e adequada – pois a coisa não é tão simples e, se eu me engano, só poderá ser mentira se eu tiver feito de propósito. Será difícil – ouso dizer até impossível – provar que o fiz de propósito. Tal observação visa apenas a anunciar desde já uma hipótese: por razões estruturais, será sempre impossível provar, em sentido estrito, que alguém mentiu, mesmo se podendo provar que não disse a verdade. Não se poderá nunca provar contra alguém que afirmar "eu me enganei, mas não quis enganar a ninguém, sou de boa fé", ou ainda, alegando a diferença sempre possível entre o dito, o dizer e o querer-dizer, os efeitos da língua, da retórica, do contexto "eu disse isso, mas não é o que queria dizer; de boa fé, em meu foro íntimo, essa não era minha intenção, houve mal-entendido".

Eis agora, então, tal como creio que a devo formular aqui, uma definição da definição tradicional da mentira. Na sua figura prevalente e reconhecida por todos, a mentira não é um fato ou um estado, é um ato intencional, um mentir – não existe a mentira, há este dizer ou este querer-dizer que se chama mentir: mentir seria dirigir a outrem (pois não se mente senão ao outro, não se pode mentir a si mesmo, a não ser a si mesmo enquanto outro) um ou mais de um enunciado, uma série de enunciados (constativos ou performativos) cujo mentiroso sabe, em consciência, em consciência explícita, temática, atual, que eles formam asserções total ou parcialmente falsas; é preciso insistir desde já nessa pluralidade e complexidade, até mesmo heterogeneidade. Tais atos intencionais são destinados ao outro, a outro ou outros, a fim de enganá-los, de levá-los a crer (a noção de crença é aqui irredutível, mesmo que permaneça obscura) naquilo que é dito, numa situação em que o mentiroso, seja por compromisso explícito, por juramento ou promessa implícita, deu a entender que diz toda a verdade e somente a verdade.

O que conta aqui, em primeiro e último lugar, é a intenção. Santo Agostinho assinalava também: "não há mentira, apesar do que se diz, sem intenção, desejo ou vontade de enganar" (fallendi cupiditas, voluntas fallendi). Tal intenção, que define a veracidade ou a mentira na ordem do dizer, do ato de dizer, permanece independente da verdade ou da falsidade do conteúdo, daquilo que é dito. A mentira depende do dizer e do querer-dizer, não do dito "... não se mente ao enunciar uma asserção falsa que cremos verdadeira e (...) antes mente-se ao enunciar uma asserção verdadeira que cremos falsa. Pois é pela intenção (ex animi sui) que se deve julgar a modalidade dos atos".

Tal definição parece a um só tempo evidente e complexa. Precisaremos de cada um de seus elementos em nossa análise. Se insisti no fato de que tal definição da mentira encerrava um conceito prevalente em nossa cultura, foi para dar uma chance à hipótese de que esse conceito, determinado por uma cultura, por uma tradição religiosa ou moral, talvez por mais de uma herança, por uma multiplicidade de línguas etc., tinha ele próprio uma história. Assim, apresenta-se uma primeira e depois uma segunda complicação: se o conceito aparentemente mais comum da mentira, se o bom senso quanto à mentira, tem uma história, ele se acha então inserido num vir-a-ser que expõe sempre ao risco de lhe relativizar a autoridade e o valor. Mas – segunda complicação – é preciso distinguir entre a história do conceito de mentira e a história da própria mentira, uma história e uma cultura que influem na prática da mentira, formas, motivações, técnicas, vias e efeitos da mentira. Mesmo dentro de uma única cultura, em que reinasse com exclusividade um conceito estável da mentira, a experiência social, a interpretação, a prática do mentir podem mudar, resultando em outra historicidade, em historicidade interna da mentira. Supondo-se que dispuséssemos em nossa tradição, chamada ocidental (judia, grega, romana, cristã, islâmica), de um conceito unificado, estabilizado e, portanto, confiável da mentira, não bastaria lhe reconhecer uma historicidade intrinsecamente teórica, ou seja, aquilo que o distinguiria de outros conceitos em outras histórias e culturas; seria também necessário examinar a hipótese de uma historicidade prática, social, política, tecnológica que o teria transformado, até marcado, por rupturas dentro de nossa tradição.

É a essa última hipótese que eu gostaria de conceder algum privilégio provisório. Mas será que algum dia se tornará possível distinguir entre

  • uma história (Historie) do conceito de mentira;

  • uma história (Geschichte) da mentira, feita de todos os acontecimentos que se deram com a mentira ou pela mentira;

  • uma história verdadeira que ordena a narrativa (Historie, historia rerum gestarum) dessas mentiras ou da mentira em geral?

Como dissociar ou alternar as três tarefas? Não nos esqueçamos jamais dessa dificuldade.

Antes mesmo de chegar às epígrafes, antes mesmo de começar a começar, devo fazer uma segunda confissão. Teriam todos o direito de desconfiar dela, como de qualquer confissão. Em razão de vários tipos de limites, particularmente dos limites de tempo estritamente fixados, não direi tudo nem mesmo o essencial daquilo que posso pensar a respeito de uma história da mentira. O fato de eu não dizer toda a verdade sobre uma história da mentira não surpreenderá ninguém: tampouco direi toda a verdade sobre aquilo que eu mesmo posso pensar ou testemunhar, hoje, sobre uma história da mentira e a maneira, totalmente diferente, pela qual seria necessário, na minha opinião, escutar ou contar tal história. Não direi, portanto, toda a verdade daquilo que eu penso. Meu testemunho será parcial. Terei culpabilidade nisso? Significará que eu lhes menti? Deixo esta questão suspensa, pelo menos até o momento da discussão, e, provavelmente, para além dela.

Duas citações fragmentárias deverão agora, como epígrafe, velar sobre esses prolegômenos. Darei, em primeiro lugar, a palavra a dois pensadores cuja memória – que habita esta casa – cabe saudar.

Longe de se limitar a contar certa história, cada um desses fragmentos reflete no seu brilho uma historicidade paradoxal e insólita.

Historicidade da mentira, em primeiro lugar. O fato de que a política é um lugar privilegiado para a mentira é bem conhecido. Hannah Arendt o lembra mais de uma vez: "As mentiras sempre foram consideradas instrumentos necessários e legítimos, não somente do ofício do político ou do demagogo, mas também do estadista. Por que será assim? O que isso significa quanto à natureza e dignidade do campo político por um lado, quanto à natureza e dignidade da verdade e da boa fé por outro lado?".

Assim é que se abre "Vérité et politique" (Truth and politics), cuja primeira versão inglesa, em 1967, foi um artigo publicado na revista New Yorker para responder a uma polêmica jornalística consecutiva à publicação de Eichmann em Jerusalém. Todos sabem que Hannah Arendt, a seu modo, se deu a missão de jornalista no processo Eichmann. Depois, denunciou grande número de mentiras e falsificações concernentes a ela mesma, pelas quais a imprensa era a principal responsável. Lembra esse contexto na primeira nota de Truth and politics, destacando assim um efeito da mídia, e o faz num grande jornal, o New Yorker. Saliento imediatamente a dimensão proporcionada pela mídia, os locais de publicação e os títulos de jornais tanto nova-iorquinos como internacionais, por razões que, espero, irão se esclarecendo. Foi em New Review of Books da época (pois este jornal também tem uma história e Hannah Arendt escreveu nele freqüentemente) que publicou alguns anos mais tarde, em 1971, "Mentir em política: reflexões sobre os Pentagon Papers" (Lying in politics: reflexions on the Pentagon Papers). Quanto aos Pentagon Papers, documentos secretos patrocinados por McNamara sobre a política americana no Vietnã, desde a Segunda Guerra Mundial até 1963, tinham sido publicados por outro jornal, também nova-iorquino e internacional, o New York Times. Falando daquilo que estava "na cabeça dos que coletaram os Pentagon Papers para o New York Times" (in the mind of those who compiled The Pentagon Papers for the New York Times), Hannah Arendt observa: "A famosa falha de credibilidade, que conhecemos durante seis longos anos, abriu-se subitamente para um abismo. As areias movediças das declarações mentirosas de todo tipo: o enganar e o enganar a si mesmo (deception as well as self-deceptions: ressalto self-deceptions que vai designar mais tarde um de nossos problemas. Será mesmo possível a self-deception ? Será um conceito rigoroso e pertinente para aquilo que aqui nos interessa, ou seja, a história da mentira? Será rigorosamente possível mentir a si mesmo?) estavam prontas para tragar todos os leitores preocupados em pôr à prova esse material que, infelizmente, deveriam reconhecer como a infra-estrutura de cerca de uma década de política externa e interna dos Estados Unidos" (The famous credibility gap, which has been with us for six long years, has suddenly opened up into an abyss. The quicksand of lying statements of all sorts, deceptions as well as self-deceptions, is apt to engulf any reader who whishes to probe this material, which, unhappily, he must recognize as the infrastructure of nearly a decade of United States foreign and domestic policy).

Se a história, e particularmente a história política, está repleta de mentiras, como bem se sabe, como a própria mentira poderia ter uma história? Como a mentira, cuja experiência é tão comum, a estrutura aparentemente tão evidente, a possibilidade universal tanto quanto intemporal, como poderia ela ter uma história que lhe seja intrínseca e essencial? Ora, eis que Hannah Arendt, sempre em Truth and politics, chama nossa atenção para uma mutação na história da mentira. Tal mutação estaria em ação ao mesmo tempo na história do conceito e da prática do mentir. Apenas em nossa modernidade é que a mentira teria alcançado seu limite absoluto e teria se tornado "completa e definitiva". Ascensão e triunfo da mentira: enquanto, nas Artes e nas Letras, Oscar Wilde se queixara antigamente daquilo que chamou – o título se tornaria célebre – O declínio da mentira (The decay of lying), Arendt, ao oposto, diagnostica um crescimento hiperbólico da mentira no campo político, que teria chegado a seu limite, ou seja, à mentira absoluta, não se tratando no caso do saber absoluto como fim da história, mas da história como conversão à mentira absoluta. Como entender isso? "A possibilidade da mentira completa e definitiva, que era desconhecida em épocas anteriores, é o perigo que nasce da manipulação moderna dos fatos. Mesmo no mundo livre, em que o governo não monopolizou o poder de decidir ou de dizer aquilo que é ou não factualmente, gigantescas organizações de interesses generalizaram uma espécie de mentalidade da raison d'Etat (em francês no texto) que antes estava limitada ao tratamento dos negócios estrangeiros, e em seus piores excessos, às situações de perigo claro e atual. A propaganda, em nível governamental, inspirou-se sob vários aspectos nos usos do business e métodos de Madison Avenue ...".

Seria tentador, porém um pouco fácil demais, opor, como dois fins da História, o conceito negativo deste mal, a mentira absoluta, à positividade do saber absoluto – seja em modo maior (Hegel), seja em modo menor (Fukuyama). O que deveria, provavelmente, ser suspeitado com alguma inquietude nesta noção de mentira absoluta, é aquilo que ela supõe ainda de saber absoluto num elemento que permanece o da consciência de si reflexiva. Por definição, o mentiroso sabe a verdade – se não toda a verdade, pelo menos a verdade daquilo que pensa, sabe o que ele quer dizer, sabe a diferença entre aquilo que pensa e aquilo que diz: sabe que mente. Tal laço de essência entre saber, ciência, consciência de si e mentira, Sócrates já ensinava e utilizava em outro texto maior de nossa tradição concernente à mentira, o Hippias menor (é operi tou pseudous). Se a mentira absoluta tem de se exercer em consciência e no seu conceito, ela corre o risco de continuar sendo a outra face do saber absoluto.

Em outra parte do mesmo artigo, dois exemplos tirados da política européia colocam novamente em cena mentiras de tipo moderno. Desta vez, os atores seriam De Gaulle e Adenauer. Proclamava o primeiro – e quase acabou convencendo – que "a França fazia parte dos vencedores da última guerra, sendo ela, portanto, uma das grandes potências"; para o segundo "a barbárie do nacional-socialismo só havia afetado uma percentagem relativamente baixa do país". Tais exemplos encontram-se rodeados por fórmulas que opõem ainda a mentira política tradicional à reescritura moderna da História e insistem num novo estatuto da imagem: "Devemos agora voltar a nossa atenção para o fenômeno, relativamente recente, da manipulação de massa, do fato e da opinião, tal como se tornou evidente na reescritura da história, na construção de imagens e na política dos governos. A mentira política tradicional, tão manifesta na história da diplomacia e da habilidade política, referia-se habitualmente a autênticos segredos – dados que nunca haviam sido tornados públicos – ou então a intenções que, de qualquer maneira, não possuem o mesmo grau de certeza que os fatos consumados (...) as mentiras políticas modernas tratam de forma eficiente coisas que não são segredos de forma alguma, praticamente conhecidas por todos. Isso é evidente no caso da reescritura da História contemporânea, sob os olhos daqueles que dela foram testemunhas, mas é verdade também na falsificação de imagens de todo tipo (...) pois uma imagem, à diferença de um retrato ao modo antigo, não tem apenas o papel de idealizar a realidade, mas de substituí-la por completo. Tal substituto, por causa das tecnologias modernas e da mídia, destaca-se, evidentemente, mais do que o original" (We must now turn our attention to the relatively recent phenomenon of mass manipulation of fact and opinion as it has become evident in rewriting history, in image-making, and in actual government policy. The traditional political lie, so prominent in the history of diplomacy and statecraft, used to concern either true secrets – data that had never been made public – or intentions, which anyhow do not possess the same degree of reliability as accomplished facts. (...) This is obvious in the case of rewriting contemporary history under the eyes of those who witnessed it, but it is equally true in image-making of all sorts (...) In contrast, the modern political lies deal efficiently with things that are not secrets at all but are known to practically everybody).

É a razão por que, já que a imagem-substituto não remete doravante ao original nem mesmo a um original representado de forma lisonjeira, mas o substitui com vantagem, passando do estatuto de representante ao de substituto, o processo da mentira moderna já não seria a dissimulação que veio encobrir a verdade, mas a destruição da realidade ou do arquivo original: "Em outros termos, a diferença entre a mentira tradicional e a moderna equivale, no mais das vezes, à diferença entre esconder e destruir" (In other words, the difference between the traditional lie and the modern lie will more often than not amount to the difference between hiding and destroying).

Teremos de aprofundar, mais adiante, a lógica de tais proposições. Será que a palavra e o conceito de mentira, se levarmos em conta precisamente sua história conceitual, são apropriados para designar os fenômenos à nossa modernidade política, tecno-mediática, testemunhal, para os quais Hannah Arendt tão cedo e tão lucidamente orientou nossa atenção – e freqüentemente por a ter experimentado, ela própria, do modo mais doloroso, em especial quando foi ser repórter no decorrer do processo Eichman?

Eis, agora a outra epígrafe, de Reiner Schürmann. A historicidade, que ele cita também, seria a de certa sacralidade ou santidade. Tal sacro-santidade (Heiligkeit) é constitutiva, por exemplo, na opinião de Kant e numa tradição augustiniana que ele não declara explicitamente, do dever ou do imperativo incondicional de não mentir. O dever de dizer a verdade é um imperativo sagrado. Schürmann observa em Le principe d'anarchie e numa leitura de Heidegger: "Uma vez que a noção de sagrado pertence ao contexto do original, ela permanece histórica: o sagrado é 'o vestígio dos deuses desaparecidos' que conduz para seu retorno (diz Heidegger em os Holzwege, p. 250 e ss.). Ao oposto, o pudor e a piedade, por acompanharem o fenômeno do originário, orientam tão somente o pensamento para o despertar da presença, o que não é de forma alguma histórico".

* * *

Agora tentarei começar, e sem mentir, acreditem em mim, por contar algumas histórias. Num modo aparentemente narrativo, o de um historiador ou de um cronista clássico, eu lhes proporia alguns exemplos particulares a partir dos quais procuraríamos progredir de uma forma reflexionante, por analogia com aquilo que Kant talvez tivesse dito sobre o juízo reflexivo. Iríamos assim do particular ao geral, para refletir e não para determinar e para refletir visando a um princípio que não poderia ser dado pela experiência. Se eu me refiro desde já, ao menos por analogia, à grande e canônica distinção kantiana entre juízos determinantes e juízos reflexivos, é por três razões: Por um lado, tal distinção ocasiona na Crítica do juízo antinomias e uma dialética que provavelmente não sejam alheias àquelas nas quais não tardaremos a nos embaraçar; por outro lado, Hannah Arendt, sempre em "Verdade e política" (Truth and politics), lembra demoradamente a virtude do exemplo segundo Kant; cita aliás a Crítica do juízo; finalmente e sobretudo, Kant é também o autor de um ensaio breve, denso, difícil, escrito em forma de resposta polêmica a um filósofo francês, Benjamin Constant, e que constitui, a meu ver, na História do Ocidente, depois de Santo Agostinho, uma das mais radicais e poderosas tentativas para pensar a mentira, para determinar, refletir, proscrever ou proibir também toda e qualquer mentira. Incondicionalmente. Trata-se de texto curto de 1797, porém pouco lido e mal conhecido, que se intitula Sobre um suposto direito de mentir por humanidade. Hannah Arendt menciona muitas vezes Kant no artigo que acabei de evocar e em outra parte, porém nunca citando este ensaio, apesar de ele ser a um só tempo tão necessário e temível, até mesmo irredutível à lógica profunda daquilo que ela quer demonstrar. Sem ir tão longe quanto seria preciso na leitura do dito texto, podemos desde já levar rigorosamente em conta o modo pelo qual Kant define nele a mentira e o imperativo de veracidade ou veridicidade (pois, o contrário da mentira não é a verdade nem a realidade, mas a veracidade ou a veridicidade, o dizer verdadeiro, o querer-dizer verdadeiro, a Wahrhaftigkeit). A definição kantiana da mentira ou do dever de veracidade apresenta-se como tão formal, imperativo e incondicional, que parece excluir justamente qualquer consideração histórica, qualquer fator ligado a condições ou hipóteses históricas. Sem se debruçar, à maneira de um casuísta, sobre todos os casos difíceis e inquietantes analisados por Santo Agostinho, partindo no mais das vezes de exemplos bíblicos, Kant parece excluir todo conteúdo histórico quando define a veracidade (Wahrhaftigkeit: veracitas) como um dever formal absoluto: "A veracidade nas declarações é o dever formal (formale Pflicht) do homem com relação a cada um, por mais grave que seja o prejuízo que dela possa resultar".

Embora seja o texto expressamente jurídico e não-ético, embora trate como o próprio título indica do direito de mentir (Recht... zu lügen), embora fale de dever de direito (Rechtspflicht) e não de dever ético, o que poderia à primeira vista parecer mais propício ou menos irredutível a um ponto de vista histórico, Kant, no entanto, na sua definição de mentira, parece excluir toda aquela historicidade que, ao contrário, Hannah Arendt introduz na própria essência, no acontecimento e desempenho da mentira. É que, se de fato esse ponto de vista de Kant permanece pura e formalmente jurídico ou metajurídico, ele corresponde ao cuidado com as condições formais do direito, do contrato social e da pura fonte do direito. "Assim, simplesmente definida como uma declaração deliberadamente não-verdadeira (unwahre Declaration) dirigida a outro homem, a mentira não precisa da cláusula segundo a qual ela deve causar prejuízo ao outro, cláusula exigida pelos juristas para sua definição (mendacium est falsiloquium in praejudicium alterius). Pois, ela sempre prejudica a outrem: mesmo não sendo a outro homem, é à humanidade em geral, já que desqualifica a fonte do direito (pondo-a fora de uso: die Rechtsquelle unbrauchbar macht)".

Kant pretende provavelmente definir aquilo que, na mentira, é mau a priori em si mesmo, na sua imanência, sejam quais forem as motivações e conseqüências. Mas a ele interessa, antes de tudo, a própria fonte do direito humano e da socialidade em geral, ou seja, a necessidade imanente de dizer o verdadeiro, quaisquer que sejam os efeitos esperados, os contextos externos e históricos. Se não se banir incondicionalmente a mentira, destrói-se o laço social da humanidade em seu próprio princípio. Nessa pura imanência é que reside a sacralidade ou santidade do mandamento racional de dizer o verdadeiro, de querer dizer o verdadeiro. Recentemente, Schürmann dizia que a sacralidade era histórica. Em outro sentido, parece que com Kant e neste caso ela não o seja, pelo menos no sentido comum. Mas permanece a hipótese de que o seja em outro sentido como origem e condição de uma história e de uma socialidade humana em geral. Kant, em todo caso, escreve: "Este é, portanto, o mandamento da razão (Vernunftgebot) que é sagrado (heiliges), incondicionalmente imperativo (unbedingt gebietendes), que não pode ser limitado por conveniência alguma: em qualquer declaração, é preciso ser verídico (Wahrhaft) (leal, sincero, honesto, de boa fé: ehrlich)".


Se o conceito de mentira tem alguma especificidade resistente, deve ser rigorosamente distinguido do erro, da ignorância, do preconceito, da falta de raciocínio e até da deficiência na ordem do saber, ou ainda – e aí as coisas vão se complicar para nós – da deficiência na ordem da ação ou do fazer, da prática e da tecnologia. Se a mentira não é nem a deficiência do saber ou do saber-fazer, nem o erro, se implica má vontade ou má fé na ordem da razão moral, não da prática, mas da razão pura e prática, se se dirige mais à crença do que ao conhecimento, então o projeto de uma história da mentira não deveria se parecer com nada daquilo que se poderia chamar, segundo Nietzsche em Crepúsculo dos idolos, a história de um erro (Geschichte eines Irrtums).

Seria preciso, sem dúvida, guardar o devido sentido das proporções. Mas como calcular uma proporção quando o poder capitalístico-tecnológico da mídia, no caso um jornal internacional, é capaz de produzir efeitos de verdade, ou de contre-vérité mundial, por vezes persistentes e indeléveis, sobre os mais graves assuntos da história da humanidade, muito além das modestas pessoas envolvidas no exemplo recente que acabei de expor? Com as devidas proporções, portanto, a história que narrei não seria nem a história de um erro nem a história de uma mentira. Para mentir, no sentido estrito e clássico do conceito, é preciso saber a verdade e deformá-la intencionalmente. É preciso então mentir a si mesmo. Queria salientar aqui é que a contre-vérité não pertence à categoria da mentira nem à da ignorância ou do erro, provavelmente nem mesmo à da mentira a si mesmo, da qual fala Hannah Arendt, não se deixa reduzir a qualquer das categorias legadas pelo pensamento tradicional sobre a mentira – desde Platão e Agostinho até Kant e, até mesmo Hannah Arendt, apesar de todas as diferenças que separam entre si esses pensadores. Pois, aqui está a hipótese que gostaria de submeter à discussão: o conceito de mentira a si mesmo, de engano a si mesmo, do qual Hannah Arendt tem uma necessidade essencial para marcar a especificidade da mentira moderna enquanto mentira absoluta, é também um conceito irredutível àquilo que se chama, com todo o rigor clássico, uma mentira. Mas o que chamo aqui apressadamente de rigor clássico do conceito de mentira tem, ele também, uma história da qual somos os herdeiros e que, em todo caso, ocupa um lugar dominante em nossa cultura e linguagem comum. A mentira a si mesmo não é a má fé nem no sentido comum nem no que Sartre lhe dá. Ela, portanto, necessita de outro nome, de outra lógica, de outras palavras, requer que sejam levadas em conta, a um só tempo, certa tecnoperformatividade da mídia e uma lógica do phántasma (isto é, do espectral) ou uma sintomatologia do inconsciente para as quais a obra de Hannah Arendt acena, mas que ela nunca desenvolve como tal ao que me parece. Temos em Verdade e política (Truth and politics) vários sinais de que tal conceito de mentira a si mesmo cumpre um papel determinante na análise arendtiana da mentira moderna. É verdade que para ilustrar a mentira a si mesmo Arendt vai buscar exemplos em anedotas e discursos de outros séculos. Sabe-se, há muito tempo, observa ela, que é difícil mentir aos outros sem mentir a si mesmo; e "quanto mais sucesso consegue o mentiroso, mais probabilidade há de que seja vítima das próprias invenções". Mas é sobretudo à modernidade que ela atribui tal possibilidade, inferindo uma conseqüência muito paradoxal a respeito da própria democracia, como se esse regime ideal fosse também aquele em que o enganar estivesse propriamente destinado a se tornar o enganar a si mesmo. Arendt reconhece então uma "força inegável" nos argumentos dos "críticos conservadores da democracia de massa": "Politicamente, o importante é que a arte moderna do 'enganar a si mesmo' seja capaz de transformar um problema exterior em questão interior, de tal maneira que um conflito entre nações ou grupos volta na cena interior. Os enganos a si mesmo praticados pelos dois lados durante o período da Guerra Fria são tão numerosos que não podem ser citados, mas evidentemente são casos especiais. Os críticos conservadores da democracia de massa salientaram freqüentemente os perigos que tal forma de governo introduz nos assuntos internacionais – sem, entretanto, mencionar os perigos particulares às monarquias ou oligarquias. A força de seus argumentos está no fato inegável de que, em condições plenamente democráticas, o 'enganar' que não inclua o 'enganar a si mesmo' é quase impossível".

Deixo suspensa a questão capital, porém muito difícil, daquilo que se pode entender por condições plenamente democráticas.

* * *

Não sei se Hannah Arendt leu ou teve conhecimento de um artigo escrito por Alexandre Koyré, mas deve-se à verdade dizer que as teses arendtianas que acabamos de citar estão exatamente na mesma linha de pensamento desse autor. O texto, publicado em Nova York em 1943 em Renaissance, revista da École Libre des Hautes Études, com o título de Réfléxions sur le mensonge foi republicado em junho de 1945 em Contemporary Jewish Record, sob o título de The political function of the modern lie. O artigo acabou por ser republicado, na França, pelo Collège International de Philosophie. Começa assim: "Nunca se mentiu tanto quanto em nossos dias. Nunca se mentiu de forma mais descarada, sistemática e constante." Nele se encontram os temas arendtianos, em particular o da mentira a si mesmo: "É incontestável que o homem sempre mentiu. Sempre mentiu a si mesmo. E aos outros"; e o da mentira moderna: "É à mentira moderna e, mais estritamente ainda, à mentira política moderna que gostaríamos sobretudo de consagrar algumas reflexões (...) Permanecemos convictos de que, nesse campo quo nihil antiquius, a época atual ou mais exatamente os regimes totalitários inovaram poderosamente (...) O homem moderno – é ainda no homem totalitário que estamos pensando – está mergulhado na mentira, respira a mentira, está submetido à mentira em todos os instantes de sua vida."

Koyré levanta também uma questão que, infelizmente, não desenvolve, pelo menos na direção que hoje me pareceria necessária; pois Koyré se pergunta – o que Arendt não faz – se tem ainda "o direito de falar aqui de mentira".

Não podemos seguir de perto a resposta que Koyré esboça para essa pergunta e me permito por isso remetê-los ao texto original, limitando-me a marcar aqui, de forma esquemática, na estratégia da resposta, as implicações e a textura de uma dificuldade filosófica, que é também ética, jurídica e política. Haverá como utilizar sua resposta caso se tente escrever uma história da mentira e uma genealogia do conceito de mentira, assim como, aliás, desta veracidade sacral, desta heiligkeit do salvo, do são (e santo) ou do incólume que sempre ligou o ético ao religioso?

Na estratégia de Koyré, à necessidade e à força da qual quero em primeiro lugar prestar homenagem, eu me inclinaria a reconhecer a um só tempo um limite e uma abertura.

Primeiramente o limite, pois Koyré parece suspeitar de qualquer pergunta sobre o direito de recorrer à palavra mentira. Insinua pelo menos que tal pergunta pode ser, já enquanto pergunta, o início de uma perversão totalitária. Ele não está errado, não está totalmente errado. O risco existe de fato e permanece terrível. Caberá, porém, interrogar-se sobre tal risco. Não haveria outra forma de tratá-lo, levando-se sempre em conta, sem relativismo, situações históricas singulares e novas, sobretudo, introduzindo na análise das situações conceitos que parecem estruturalmente excluídos tanto por Koyré quanto por Arendt, e já antes deles por Kant, Agostinho e Platão, por razões essenciais?

Koyré lembra em primeiro lugar, com toda a razão e mesmo bom senso, que a noção de mentira pressupõe a de veracidade da qual é o oposto ou a negação, da mesma forma que a noção de falso supõe a de verdadeiro. Ele acrescenta então uma advertência pertinente e grave, que nunca deveria ser esquecida, sobretudo em política, mas que nunca nos deveria deter na genealogia desconstrutora do conceito de mentira e, portanto, da veracidade. Tal genealogia tão necessária para a memória e a lucidez crítica, mas também para as responsabilidades que ficam por assumir no presente e no futuro, como fazer para que nem por isso ela acabe arruinando, desacreditando simplesmente aquilo que analisa? Como conduzir uma história desconstrutora da oposição entre veracidade e mentira sem desacreditá-la e sem abrir caminho para todas as perversões contra as quais Koyré e Arendt terão sempre razão de nos prevenir?

Eis, portanto, a advertência de Koyré. Foi escrita em 1943, não nos esqueçamos disso, e vale tanto para aquilo que acontecia naquela época, como para o que aconteceu depois e se desenvolve em nossos dias; pois, o que ele diagnostica sobre as práticas totalitárias de então (para nós, foi ontem) poderia se estender amplamente a certas práticas atuais de supostas democracias, na era de certa hegemonia capitalístico-tecnológica da mídia. "Ora, as filosofias oficiais dos regimes totalitários proclamam de modo unânime que a concepção da verdade objetiva, uma para todos, não faz sentido algum e o critério da 'Verdade' não é seu valor universal (mais adiante, Koyré lembra que existe em Mein Kampf uma teoria da mentira e que os leitores desse livro não entenderam que se tratava deles), mas antes sua conformidade com o espírito da raça, da nação ou da classe, sua utilidade racial, nacional ou social. Prolongando e levando até o fim as teorias biologistas, pragmatistas, ativistas da verdade e consumando assim o que se chamou acertadamente de 'a traição dos clérigos', as filosofias oficiais dos regimes totalitários negam o valor próprio do pensamento, o qual para eles não é uma luz, mas uma arma; a sua meta, a sua função, dizem, não é a de nos revelar o real, ou seja, aquilo que é, mas a de nos ajudar a modificá-lo, a transformá-lo, guiando-nos em direção àquilo que não é. Para tanto, como já foi reconhecido há muito tempo, o mito é freqüentemente preferível à ciência, e a retórica que se dirige às paixões, preferível à demonstração que se dirige à inteligência.

Repito e insisto, para evitar qualquer mal-entendido: o que diz aqui Koyré parece-me verdadeiro, justo, necessário. Devemos antes de tudo subscrevê-lo. O perigo que ele denuncia sempre deverá ser vigiado com uma diligência sem falha. Entretanto, como puderam ouvir, o que ele condena, muito além do biologismo e das filosofias oficiais do totalitarismo, são todas as interpretações chamadas por ele "pragmatistas ou ativistas" da verdade, o que pode ir mais longe. A suspeita pode atingir tudo aquilo que ultrapassar, por mais de um lado, a determinação da verdade como objetividade ou como tema de um enunciado constativo, até mesmo como adequação e, no limite, qualquer consideração de enunciados performativos. Em outros termos, a mesma suspeita atingiria qualquer problemática que delimitasse, questionasse ou a fortiori desconstruísse a autoridade da verdade como objetividade ou até mesmo como revelação (aletheia). A mesma suspeita atingiria qualquer problemática que levasse em conta, por exemplo, no campo da coisa pública, política ou retórico-tecnológico da mídia, a possibilidade de linguagens instituidoras e performativas (inclusive o testemunho – ato que sempre implica promessa ou juramento performativo). Tal problemática, tão necessária, e para o melhor e para o pior, correria, portanto, o risco de ser antecipadamente desqualificada ou paralisada.

Ressalto aqui duas precauções igualmente necessárias: por um lado, não digo isto para afastar a suspeita formulada por Koyré: mais uma vez, ela é indispensável e legítima, e deve vigiar essas novas problemáticas, por mais urgentes que sejam. Por outro, é verdade também que as mesmas novas problemáticas (do tipo pragmático-desconstrutivo) podem servir a interesses contraditórios. É preciso que essa dupla possibilidade permaneça aberta, ao mesmo tempo como chance e ameaça, sem o que estaríamos apenas assistindo ao desdobramento irresponsável de uma máquina programática. A responsabilidade ética, jurídica ou política, caso haja, consiste em decidir sobre a orientação estratégica que deve ser dada a essa problemática que permanece uma problemática interpretativa e ativa, em todo caso performativa, para a qual a verdade, da mesma forma que a realidade, não é um objeto dado antecipadamente, sobre o qual se trataria apenas de refletir adequadamente. É uma problemática do testemunho, em oposição à prova, que me parece aqui necessária, mas que não tenho condição de desenvolver (digo também, muito rapidamente, por não ter tempo de me estender mais, que uso aqui, com muita facilidade, a palavra performativo, deixando de levantar questões já formuladas em outras oportunidades sobre a oposição performativo/constativo, seus paradoxos e sobretudo os limites de sua pertinência e pureza. Austin foi o primeiro a nos prevenir contra uma pretensa "pureza" e assim eu não iria, ainda menos opondo-me a ele, tentar restaurá-la ou fazer de forma apressada que se acredite nela novamente).

Esse seria, a meu ver, um dos limites da tese de Koyré no artigo em questão. O mesmo limite, acredito, encontra-se em Arendt. Mas Koyré esboça um passo além de tal limite, numa direção em que eu gostaria de ter avançado. De fato, Koyré sugere que os regimes totalitários e os que a eles se assemelham de uma forma ou de outra, nunca se arriscaram para além da distinção entre verdade e mentira – distinção oposicional e tradicional – por terem dela uma necessidade vital, pois é dentro dela que mentem e, por isso, têm interesse em mantê-la intacta e em sua forma mais dogmática a fim de pôr em prática o enganar. Apenas, conforme a velha axiomática metafísica, eles concedem a primazia à mentira, limitando-se assim à simples inversão da hierarquia, inversão com a qual Nietzsche, no fim da História de um erro (e em outros lugares), diz que não podemos nos satisfazer.

Citemos ainda longo trecho de Koyré: "Assim, em suas publicações (mesmo naquelas que se dizem científicas), em seus discursos e, evidentemente, em sua propaganda, os representantes dos regimes totalitários pouco se importam com a verdade objetiva. Mais poderosos que o próprio Deus Todo-Poderoso, transformam a seu bel-prazer o presente e até o passado [é pela 'reescritura' do passado histórico que superam o próprio Deus, o qual seria incapaz de mudar o passado: em 1943, sob o regime de Vichy, Koyré evoca 'o ensinamento histórico dos regimes totalitários' e também 'os novos manuais de História das escolas francesas']. Disso poder-se-ia concluir – e isso já ocorreu algumas vezes – que os regimes totalitários 'situam-se além da verdade e da mentira'. Acreditamos, por nossa parte, que não é nada disso. A distinção entre verdade e mentira, imaginário e real, permanece válida mesmo dentro das concepções e regimes totalitários. O lugar e o papel de tais conceitos é que, de certa forma, foram invertidos: os regimes totalitários baseiam-se na primazia da mentira" (é de Koyré o grifo das últimas palavras).

Essa primazia da mentira num sistema totalitário (confessado ou não), o qual, mais do que qualquer outro, precisa de uma crença na oposição estável e metafisicamente assegurada entre veracidade e mentira, Koyré não encontrou na época, dificuldade alguma para ilustrá-la; não teríamos também qualquer dificuldade em fazer o mesmo hoje, com exemplos próximos ou longe de nós. Por definição, o mentiroso é alguém afirmando que está dizendo a verdade (essa é uma lei de estrutura e sem história); quanto mais, porém, uma máquina política mente, mais ela faz do amor à verdade uma palavra de ordem de sua retórica "Odeio a mentira", é uma declaração célebre do marechal Pétain, como o lembra Koyré. Gostaria, por minha parte, de comentar outro slogan do tempo de Vichy com sua ideologia reacionária do "Retorno à terra", como lugar seguro dos valores da família e da pátria: "A terra não mente", dizia outro slogan da época.

Entre as perspectivas abertas por essas páginas de Koyré, seria preciso, a meu ver, privilegiar pelo menos duas delas e deixar suspensa a elas uma grave questão.

  • A primeira abertura diz respeito à perversão paradoxal que consiste em mentir no segundo grau: "técnica maquiavélica das piores", diz Koyré, arte na qual Hitler tinha se tornado perito e se resumia em dizer a verdade sabendo que não seria levado a sério pelos desavisados, numa espécie de "conspiração em plena luz do dia", da qual Hannah Arendt falará também freqüentemente como da forma da mentira moderna. Dizer a verdade com o fim de enganar aqueles que crêem que não devem crer nela. Koyré não fora – tampouco Freud, aliás – o primeiro a identificar tal astúcia, mas manifesta a preocupação de interpretá-la como técnica política moderna na época das comunicações de massa e do totalitarismo.

  • A segunda perspectiva do artigo se abre para uma teoria do segredo. Esse é, na realidade, o tema fundamental e mais insistente do artigo: não o tema da "sociedade secreta", mas o de uma "sociedade de segredos", cuja estrutura possibilita uma "conspiração em plena luz do dia" que não seja uma contradição in adjecto.

É o desenvolvimento muito original de tal teoria do segredo político que poderia inspirar preocupação, a respeito do qual direi apenas poucas palavras: parece que Koyré considera que todo segredo é em princípio uma ameaça à res publica, na realidade ao espaço democrático. Entendo sua posição, consoante com certa essência da politeia como fenomenalidade absoluta, mas me pergunto se não estamos vislumbrando aqui o anúncio da perversão oposta, a de um politismo, de uma absolutização do político, de uma extensão sem limite da área do político. Recusando então qualquer direito ao segredo, o poder político intima a todos, primeiro de tudo e em tudo, que se comportem como cidadãos responsáveis perante a lei da polis. Não haveria nisso, em nome de determinado tipo de verdade objetiva e fenomenal, outra semente de totalitarismo com aparência democrática? Não li sem algum estupor indignado uma observação de Koyré que, para ilustrar o treinamento para o segredo, o críptico e a mentira, acusava, sem diferenciá-los, o espartano, o índio, o jesuíta e o marrano: "Citemos ao acaso o treinamento para a mentira do jovem espartano e do jovem índio, a mentalidade do marrano e do jesuíta".

Se, contra o fenomenalismo e o politismo integral, nos ativéssemos a um direito incondicional ao segredo e tal segredo absoluto devesse permanecer inacessível e invulnerável, ele não concerniria ao segredo político, mas, antes, à figura metonímia do marrano, ao direito ao segredo enquanto direito à resistência contra a ordem do político, até mesmo do teológico-político em geral e para além dessa ordem; e, na política, o mesmo direito poderia inspirar, como a uma de suas figuras, o direito que os Estados Unidos, em caso de força maior e quando a razão de Estado já não representa a última palavra da ética, designam, pela belíssima palavra de civil desobedience, a mais respeitável de suas tradições.

Devo, ainda por falta de tempo, acelerar a conclusão e voltar a Hannah Arendt. Há realmente a possibilidade de uma história da mentira enquanto tal? Estou menos seguro disso do que nunca. Mas caso se tentasse tal empreendimento, seria preciso levar em consideração toda a obra de Hannah Arendt e mais precisamente, nos ensaios que eu citei, dois conjuntos de quatro motivos dos quais uns parecem propícios e outros desfavoráveis a tal projeto.

Concluindo, portanto, eis a seguir um programa e uma dupla de quatro mensagens telegráficas. A seguir. os motivos propícios a tal história da mentira:

  • O cuidado claramente expresso de subtrair essa história à predicação moral. Um pouco como Nietzsche, de modo análogo e ao mesmo tempo diferente, Arendt pretendia tratar diversas questões num sentido extramoral.

  • A consideração não apenas do desenvolvimento da mídia, mas de uma nova estrutura da mídia que veio transformar o estatuto do substituto icônico da imagem e do espaço público (temática ausente do discurso de Koyré).

  • A intenção evidente de delimitar a ordem do político, de cercá-lo de fronteiras teóricas, práticas, sociais e institucionais (fronteiras em princípio muito estritas, apesar de, como é fácil imaginar, ficarem difíceis de ser traçadas, por razões não contingentes). O que se dá em duas direções: por um lado, destacando que o homem, na sua "singularidade", na "verdade filosófica" de sua individualidade solitária é "não-político por natureza"; por outro lado, atribuindo à ordem do Judiciário e da Universidade, virtualmente independente do político, missões novas e responsabilidades capitais nessa delimitação da mentira política.

  • Esboçar, sem usar a palavra e sem desenvolver suficiente ou determinantemente, uma problemática da performatividade de uma mentira cuja estrutura e cujo acontecer estariam ligados de forma essencial ao conceito de ação e mais especialmente da ação política .

Hannah Arendt lembra freqüentemente que o mentiroso é, ousarei dizer, um homem de ação por excelência. Entre mentir e agir, agir em política, manifestar a própria liberdade pela ação, transformar os fatos, antecipar o futuro há como uma afinidade essencial. Segundo Arendt, a imaginação é a raiz comum à "capacidade de mentir" e à "capacidade de agir". Capacidade da imagem em produzir: imaginação produtora como experiência do tempo, teriam dito Kant ou Hegel. A mentira é o futuro, podemos nos arriscar a dizer para além da letra, mas sem trair a intenção de Arendt nesse contexto. Ao contrário, dizer a verdade é dizer aquilo que é ou terá sido, antes seria dizer o passado. Mesmo insistindo em marcar-lhe os limites, Arendt fala de uma "afinidade inegável da mentira com a ação, com a mudança do mundo, ou seja, com a política". O mentiroso, diz ela, não precisa de acomodações para "aparecer na cena política"; tem ele a grande vantagem de estar sempre, por assim dizer, exatamente no centro dela. Ele é ator por natureza; diz o que não é porque quer que as coisas sejam diferentes daquilo que são; em outras palavras, "ele quer mudar o mundo (...) Em outros termos, nossa capacidade de mentir – mas não necessariamente nossa capacidade de dizer a verdade – faz parte de alguns dos dados manifestos e demonstráveis que confirmam a existência da liberdade humana".

Mas se tais enunciados requerem algumas modalizações devem ser corrigidos por determinado coeficiente de possibilidade (tradução que não temos tempo de fazer agora), é claro que não temos apenas aqui, esclarecida por Hannah Arendt, a idéia de uma história da mentira, mas, também, com radicalidade maior, a tese segundo a qual não existiria história em geral nem história política em particular sem ao menos a possibilidade do mentir, isto é, da liberdade e da ação. Assim como a da imaginação e a do tempo, da imaginação tanto quanto do tempo.

Em que o discurso arendtiano fecha ou corre o risco de fechar o que ele abre dessa forma? É o que precisaria ser evocado para concluir ou pelo menos encerrar nossos tímidos prolegômenos.

Em contrapartida, quatro motivos me parecem ter desempenhado um papel inibidor, se não proibidor, na tentativa de levar a sério semelhante história.

  • A ausência de uma verdadeira problemática do testemunho ou da atestação (testimony, witnessing and bearing witness). Arendt não se interessa pela história de tal conceito, tampouco daquilo que o distingue absolutamente da prova ou do arquivo, mesmo que, na realidade e de forma não fortuita, um equívoco venha sempre confundir o limite entre tais possibilidades radicalmente heterogêneas. A distinção entre "verdade de fato" e "verdade racional", que forma o arcabouço de todo esse discurso, parece ser aqui insuficiente. Arendt reconhece ter recorrido à distinção apenas provisoriamente e por comodidade. Cita, mais de uma vez, o testemunho, mas não faz dele o verdadeiro tema de uma análise eidética; tampouco o faz para a mentira nem aliás para a fé ou a boa fé. Koyré procede da mesma forma. Ambos fazem como se soubessem o que quer dizer mentir.

  • O que precede não está desligado do conceito de "mentir a si mesmo" ou de "auto-sugestão", que cumpre um papel determinante em todas as demonstrações de Arendt. Tal conceito permanece confuso na psicologia por ele implicada. Permanece também logicamente incompatível com o rigor de qualquer conceito clássico da mentira. Mentir sempre há de querer dizer enganar intencional e conscientemente o outro, sabendo aquilo que se esconde deliberadamente, sem, portanto, mentir a si mesmo. Se pelo menos a palavra si tem algum sentido, o si exclui o mentir a si mesmo. Outra experiência, qualquer que seja, requer então outro nome e procede provavelmente de outra zona ou estrutura, digamos para abreviar, da intersubjetividade ou da relação ao outro, o outro em si, numa ipseidade mais originária do que o ego (individual ou coletivo), uma ipseidade de encraves, uma ipseidade divisível ou clivada. Não direi que a psicanálise ou a analítica do Dasein (dois discursos que não se regulam a princípio por uma teoria do ego ou do eu) são as únicas capazes de medir-se com esses fenômenos chamados por Arendt mentir a si mesmo ou auto-sugestão; mas Arendt, como Koyré, no momento em que ambos falam necessariamente de mentira a si mesmo em política, fazem aparentemente tudo para evitar qualquer alusão a Freud e Heidegger sobre tais problemas. Será fortuito?

  • O que parece comprometer o projeto de uma tal história da mentira, ou pelo menos sua irredutível especificidade, é um otimismo indefectível, o qual não pertence à ordem da psicologia. Ele não reflete em primeiro lugar uma disposição pessoal, um hábito ou um ser-no-mundo, nem mesmo um projeto de Hannah Arendt. Afinal, falar de nosso tempo como da idade da mentira absoluta, procurar se dar os meios de analisá-lo com implacável lucidez não é demonstrar otimismo. Otimista, antes, seria o dispositivo conceitual e problemático que aqui se encontra estabelecido ou credenciado. Está em jogo a determinação da mentira política, mas também, antes de tudo, a da verdade em geral, a qual sempre deve triunfar e acabar por se revelar pois, em sua estrutura, como repete freqüentemente Arendt, a verdade é estabilidade assegurada, irreversibilidade; ela sobrevive indefinidamente às mentiras, ficções e imagens. Tal determinação clássica da verdade, como sobrevivência indefinida do estável (bebaion, diriam Platão e Aristóteles) , não parece simplesmente suscitar grande número de questões desconstrutivas (e não apenas no estilo heideggeriano). Ao excluir até a possibilidade de uma mentira sobreviver indefinidamente, ela não vai somente contra a própria experiência; ela faz da história, como história da mentira, o acidente epidérmico e epifenomenal de uma parúsia da verdade. Ora, uma história específica da própria mentira deveria passar, pelo menos, pela história da cristianização (em Paulo, em alguns Padres da Igreja, em Agostinho e seu De mendacio etc.), da temática grega do pseudos (que quer dizer a uma só vez o falso, o fictício e o mentiroso, o que não simplifica ou simplifica demais as coisas), do eidolon e do phántasma espectral, da retórica, da sofística e da mentira politicamente útil, segundo A Repúbliva de Platão, da mentira útil, curativa ou preventiva como phármakon. Essa cristianização radical encontra-se em estado secularizado, e na Idade das Luzes, se é que se pode dizer assim, na doutrina kantiana que condena a mentira como decadência absoluta, "vício capital da natureza humana", "negação da dignidade humana": "o homem que não acredita naquilo que diz é menos do que uma coisa", diz Kant em sua Doutrina da virtude. A não ser, teríamos vontade de responder, que deixe então de ser menos do que uma coisa para se tornar alguma coisa ou até alguém, já algo como um homem.

  • Eis porque, finalmente, podemos sempre nos preocupar com a secundarização, a relativização ou acidentalização, até mesmo banalização de uma teoria ou história da mentira, enquanto continuasse dominada pela certeza arendtiana de uma vitória final e de uma sobrevivência assegurada da verdade (e não apenas da veracidade) sobre a mentira, ainda que se lhe aceite a teleologia apenas como justa idéia reguladora em política ou na história do socius humano em geral. Não se trata aqui, para mim, de opor a esse risco a hipótese judeo-cristiano-kantiana da mentira como mal radical e sinal da corrupção originária da existência humana, mas de marcar que sem ao menos a possibilidade dessa perversão radical e de sua sobrevivência infinita, sem a consideração em particular de mutações tecnológicas na história e na estrutura do simulacro ou do substituto icônico, sempre fracassaremos na tentativa de pensar a mentira em si mesma, a possibilidade de sua história, a possibilidade de uma história que a envolva intrinsecamente e, provavelmente, a possibilidade de uma história tout court.

Mas é preciso confessar, para acelerar a conclusão, que nada nem ninguém poderá jamais comprovar, justamente, o que se chama propriamente comprovar, no sentido estrito do saber, da demonstração teórica e do juízo determinante, a existência e a necessidade de uma história como essa enquanto história da mentira.

Apenas se pode dizer aquilo que poderia ou deveria ser a história da mentira, se é que ela existe.

Psicologia da mentira

A capacidade dos hominídeos de mentir é percebida cedo e quase universalmente no desenvolvimento humano e estudos de linguagem com pongídeos. Uma famosa mentira do último grupo foi quando Koko, a gorila, confrontada por seus treinadores depois de uma explosão de raiva no qual ela arrancou uma pia de aço do lugar onde ela estava presa, sinalizou na Língua de Sinais Americana, "o gato fez isso," apontando para seu pequeno gato. Não está claro se isso foi uma piada ou uma tentativa genuína de culpar seu pequeno bicho de estimação.

A psicologia evolucionária está preocupada com a teoria da mente que as pessoas empregam para simular a reação de outra a sua história e determinar se uma mentira será verossímil. O marco mais comumente citado na ascensão disso, o que é conhecido como inteligência maquiavélica, ocorre na idade humana de cerca de quatro anos e meio, quando as crianças começam a ser capazes de mentir de maneira convincente. Antes disso, elas parecem ser incapazes de compreender que todo mundo não tem a mesma visão dos eventos que elas têm – e parecem presumir que há apenas um ponto de vista —o seu próprio — que precisa ser integrado a qualquer história.

Por que as pessoas mentem?

Há uma área de pesquisa em psicologia que se chama “correspondência entre o fazer e o dizer”, que investiga as variáveis relacionadas ao que se pode chamar de “dizer a verdade” ou “contar mentira”. Estudos (Paniagua, 1989; Lima, 2004) têm investigado situações geradoras da apresentação de relato coerente (verdade) ou relato incoerente (mentira). Os parágrafos a seguir estão baseados numa interpretação dos achados desses autores.

Pode-se dizer que há uma dicotomia, que seria falar a verdade, ou seja, descrever de forma coerente fatos acontecimentos comportamentos ou contar mentira, que seria apresentar uma afirmação pouco adequada ou incompatível com o que, de fato, ocorreu. Tanto falar a verdade quanto contar uma mentira, são comportamentos verbais aprendidos e mantidos pelas conseqüências que produzem, em primeiro lugar, para aquele que fala. Assim, se alguém é beneficiado por contar uma mentira, tal comportamento pode ser aprendido. Se mentir mais vezes trouxer “vantagens”, ele será mantido em alta freqüência. É importante, ainda, considerar que o comportamento de mentir pode afastar ou adiar conseqüências desagradáveis, como no exemplo do marido infiel que insiste em dizer à sua mulher que não cometeu traição. Assim sendo, mentir também seria aprendido e mantido.

As crianças mentem com freqüência para seus pais quando estes costumam repreendê-las pelo que fazem, quando punem deliberadamente seus relatos sobre o que consideram ser errado ou quando limitam muito as possibilidades sobre o que as crianças podem fazer. Então, elas mentiriam para ter a oportunidade de brincar com um coleguinha que não é benquisto pela sua família, mentiriam sobre ter realizado a tarefa de casa para assistir ao seu desenho favorito.

É necessário diferenciar o comportamento de mentir enquanto relato em desacordo com acontecimentos/ fatos do relato impreciso sobre algo pela falta de habilidade em descrever. Na mentira, uma pessoa tem consciência de que (sabe que) sua descrição não é coerente com o que fez. Por outro lado, uma secretária pode relatar (incoerentemente) ao chefe que entrou na primeira sala à direita do corredor da empresa e não atendeu à solicitação dele porque a sala estava fechada. Ela apresenta este relato (que não é verdadeiro) por não ter aprendido a diferença entre esquerda e direita.

Você quer que as pessoas digam a verdade?

Os psicoterapeutas procuram ter, na relação com seus clientes, uma audiência não-punitiva. Isso significa ouvir e não julgar, ouvir e não criticar, ouvir e não punir. Tal contexto é que torna possível o relato do cliente sobre coisas que não seriam ditas nem para os bons amigos.

Como foi afirmado anteriormente, pode-se mentir para ter acesso a alguma vantagem ou evitar “mal maior”. Assim sendo, as pessoas têm maior probabilidade de dizer a verdade diante de contextos em que o que elas dizem não é julgado, não é criticado, nem punido. Se um pai pune o filho quando ele relata que assistiu TV quando deveria estudar, é importante observar que ele puniu o comportamento do filho ter feito o que não devia, mas, puniu principalmente o comportamento de dizer a verdade. Pense, após ter sido punido por dizer a verdade, você a diria novamente?

É claro que nem sempre se pode aceitar a verdade sem que algum tipo de sanção seja administrada. Mas, se todo relato de alguém sobre o que fez ou como agiu diante de uma situação passa a ser criticado, julgado ou o relato passa a ser motivo para uma discussão, é provável que esse relato não ocorra mais ou que passe a ser um relato que apresente algo diferente do que ocorreu. Isso vale para qualquer relação interpessoal. Um amigo continuará dizendo a verdade sobre o que pensa sobre você se ele sentir-se ouvido. Por isso, dar espaço para as pessoas dizerem o que pensam, relatarem o que fizeram é um bom caminho seja para um pai ou uma esposa continuar ouvindo a verdade.

Outra forma de aumentar a probabilidade do dizer a verdade em crianças ou adultos é valorizar, enaltecer e gratificar os momentos em que a verdade é dita. No caso das crianças, pode-se ensiná-las a dizer a verdade, expondo-as a algumas situações em que sejam acompanhadas e solicitando que elas relatem o que experienciaram. Elogiar, enaltecer e gratificar relatos mais próximos da experiência estabelece condição para a aprendizagem do “dizer a verdade”.

Mentiras e confiança

Uma razão para que a mentira possa persistir como uma estratégia em ambientes sociais é que não é a comparação dos fatos contra alguma noção de verdade, mas em vez disso, a avaliação de se uma traição da confiança aconteceu ou não, que determina a resposta a uma mentira.

No caso da Guerra com o Iraque, por exemplo, o fato de que a mentira agravou um conflito poderia ter representado uma séria quebra da confiança e traição daqueles que iriam sofrer no conflito. No entanto, qualquer um que aceita como verdadeira a afirmativa de que o regime em vigor era uma ameaça "inevitável" a aqueles que pereceram o combatendo, ou aqueles cujas vidas estão em risco como conseqüência da invasão, teria uma probabilidade muito menor de considerar agravar o conflito no momento mais conveniente ser qualquer tipo de traição. A perspectiva do bom senso conservador com freqüência se baseia nesse tipo de suposição de certeza. Mas se conflitos que são agravados são escolhidos devido a alguma ideologia, é difícil ver como isso difere da simples lógica de "o poder torna certo".

Mentiras durante a infância

As mentiras começam cedo. Crianças pequenas aprendem pela experiência que declarar uma inverdade pode evitar punições por má ações, antes de desenvolverem a teoria da mente Nesse estágio do desenvolvimento, as crianças as vezes contam mentiras fantásticas e inacreditáveis, parecidas com a mentira de Koko, a gorila discutida anteriormente, porque eles não possuem o sistema de referência conceitual para julgar se uma declaração é verossímil ou mesmo entender o conceito de verossimilhança. necessária para entender porque funciona. De maneira complementar, existem aqueles que acreditam que as crianças mentem por insegurança, e por não compreender a gravidade dos seus atos "escapa[m] da responsabilidade apelando para a mentira".

Quando a criança primeiro aprende como a mentira funciona, naturalmente elas não possuem o entendimento moral para evitar fazer isso. É necessário anos observando as pessoas mentirem e o resultado das mentiras para desenvolver um entendimento adequado. A interferência da família também é imprescindível para que a criança compreenda através de bons exemplos a forma correta de agir.

A propensão para mentir varia muito entre as crianças, com algumas fazendo isso de maneira costumeira e outras sendo com freqüência honestas. Os hábitos em relação a isso mudam normalmente até o início da idade adulta. Nos casos em que esta mudança não ocorre, a psicologia os definem como adultos no estágio de infância psicológica.

Alguns vêem que as crianças - como um todo - têm maior tendência a mentir do que os adultos. Outros defendem que a quantidade de mentiras permanece o mesmo, mas os adultos mentem sobre coisas diferentes. Com certeza a mentira de adultos costuma ser mais sofisticada, e de conseqüências maiores do que as contadas por crianças. Boa parte desse julgamento depende se a pessoa conta inverdades diplomáticas, insinceridade social, retórica política e outros comportamentos adultos que são tidos como mentiras.

Detecção de mentiras

A questão de se as mentiras podem ser detectadas através de meios não-verbais é assunto de particular controvérsia.

  • Polígrafos são máquinas de detecção de mentiras que medem o estresse fisiológico que um entrevistado sente em várias medidas enquanto dá declarações ou responde perguntas. Afirma-se que picos do estresse indicam comportamento mentiroso. A precisão desse método é amplamente contestada, e em vários casos bem-conhecidos provou-se que ele foi ludibriado. No entanto, ele permanece em uso em muitas áreas.
  • Vários soros da verdade foram propostos e usados durante depoimentos, embora nenhum seja considerado muito confiável. A CIA tentou descobrir um "soro da verdade" no projeto MK-ULTRA, mas foi na maior parte um fiasco.
  • Microexpressões faciais foram mostradas como um método confiável de expor mentiras, de acordo com o Diogenes Project de Paul Ekman e do Psy7Faces de Armindo Freitas-Magalhães. Em outras palavras, um lampejo minúsculo da expressão facial de "perturbação", embora difícil de ser vista para o olho destreinado, pode indicar quando a pessoa está mentindo.

Mais recentemente, neurocientistas descobriram que a mentira ativa estruturas do cérebro completamente diferentes durante exames de tomografia por ressonância magnética, o que pode levar a um método mais preciso (embora não prático) de detecção de mentiras.

Mentira como sintoma de Patologias

Síndrome de Münchhausen
O hábito arraigado de mentir fantasticamente pode refletir um Transtorno da Personalidade que alguns autores chamam de “pseudologia fantástica”, que seria caracterizado por uma compulsão a fantasiar uma vida fictícia para causar grande mobilização e perplexidade em outras pessoas (Catalán, 2006), outros autores denominam de Síndrome de Münchhausen.

Nesta síndrome a pessoa não suporta a idéia dela ser comum, normal, trivial... Não. Ela tem que ser super especial, tem que ter peculiaridades completamente excepcionais e fantásticas. Essa inclinação impulsiva para a mentira reflete uma grande vontade em ser admirado, de ser digno de amor e consideração pelos demais, conseqüentemente reflete uma grande insatisfação com a real e medíocre condição existencial.

A Síndrome de Münchhausen é relativamente rara, de difícil diagnóstico, e caracterizada pela fabricação intencional ou simulação de sintomas e sinais físicos ou psicológicos sempre de natureza fantástica em um filho ou em si próprio, levando a procedimentos diagnósticos desnecessários e potencialmente danosos. Há sempre uma fraude intencional nessa síndrome.

Em 1951, Asher idealizou o termo Síndrome de Münchhausen para descrever os pacientes que produziam e apresentavam intencionalmente sintomas físicos para receber tratamento médico e hospitalar freqüente. Uma das características associadas mais freqüente era a mentira patológica, juntamente com uma vasta história de atendimentos médicos e internações hospitalares.

Depressão Grave
Alguns casos de depressão grave também podem ser acompanhados de mentiras patológicas. Nessa situação a pessoa se coloca em um verdadeiro emaranhado de estórias, desculpas e relatos que vão cada vez complicando mais a sustentação da mentira.

As mentiras iniciais na depressão têm, normalmente, o propósito de ocultar algum acontecimento que deixaria outra pessoa triste, aborrecida, decepcionada. Daí em diante, há contínua necessidade de novas mentiras para completar a primeira. Percebe-se que, consoante a preocupação do deprimido com o sentimento do outro, ele mente para poupar maiores sofrimentos desse outro, mas o resultado é sempre desastroso.

Na depressão as mentiras, ao contrário da sociopatia, são acompanhadas de importante sentimento de culpa e arrependimento.

Transtornos do Controle dos Impulsos (veja)
No Jogo Patológico, na Cleptomania, na Bulimia, na Dependência Química e outros Transtornos do Controle dos Impulsos existem muitas mentiras, cujo objetivo é ocultar um comportamento sabidamente reprovado socialmente.

Personalidade Anti-Social
O quadro mais grave onde a mentira aparece como sintoma importante é o Transtorno Anti-Social da Personalidade, ou Personalidade Psicopática. Embora qualquer pessoa possa mentir, temos de distinguir a mentira banal da mentira psicopática. O psicopata utiliza a mentira como uma ferramenta de trabalho. Normalmente está tão treinado e habilitado a mentir que é difícil captar quando mente. Ele mente olhando nos olhos e com atitude completamente neutra e relaxada.

O psicopata não mente circunstancialmente ou esporadicamente para conseguir safar-se de alguma situação. Ele sabe que está mentindo, não se importa, não tem vergonha ou arrependimento, muitas vezes mente sem nenhuma justificativa ou motivo.

Normalmente o psicopata diz o que convém e o que se espera para aquela circunstância. Ele pode mentir com a palavra ou com o corpo, quando simula e teatraliza situações vantajosas para ele, podendo fazer-se arrependido, ofendido, magoado, simulando tentativas de suicídio, etc.

A personalidade do psicopata é narcisística, quer ser admirado, quer ser o mais rico, mais bonito, melhor vestido. Assim, ele tenta adaptar a realidade à sua imaginação, à seu personagem do momento, de acordo com a circunstância e com sua personalidade é narcisística. Esse indivíduo pode converter-se no personagem que sua imaginação cria como adequada para atuar no meio com sucesso, propondo a todos a sensação de que estão, de fato, em frente a um personagem verdadeiro.

Menosprezando a Realidade

Obviamente, nem todas as vezes que a realidade é falseada, distorcida, recriada ou substituída se constituirá uma mentira. Na Demência, por exemplo, a cognição é de tal forma comprometida que a pessoa relata aos outros um mundo profundamente modificado e no qual acredita, sem a intenção de ludibriar. O mesmo acontece no Delírio, seja do psicótico esquizofrênico, do delirante crônico ou do deprimido grave com sintomas psicóticos.

Aliás, desde crianças aprendemos a abstrair a realidade através dos devaneios, fantasias, fábulas. A própria literatura pode nos conduzir a um mundo apaixonante “de mentirinha”.

E como a concepção da mentira se embasa na intencionalidade, esta pode ser singela e acanhada, como é o caso de uma mentira tosca e pueril da pessoa que namora mas afirma o contrário, com o propósito de facilitar uma conquista amorosa, até uma mentira de proporções inimagináveis, como por exemplo, o falso relatório sobre a existência de um arsenal de armas de destruição em massa no Iraque, como justificativa para uma guerra igualmente de destruição em massa.

Há a mentira institucional, quando a propaganda mal intencionada tenta convencer de que toda corrupção governamental será devidamente apurada e apenada. Bem ilustra isso, Hannah Arendt, lembrando que “As mentiras sempre foram consideradas instrumentos necessários e legítimos, não somente do ofício do político ou do demagogo, mas também do estadista” (in. Derrida, 1996).

Mentir em nome do amor e da sabedoria

Kant, o grande filósofo alemão do século XVIII, era um adepto indefectível da razão. A razão dignifica-nos, eleva-nos, transforma-nos em seres superiores. Nesse âmbito, Kant concebeu os chamados «imperativos categóricos», do tipo «Não mintas, em ocasião alguma», a que deveríamos obedecer piamente.

Kant não admitia excepções aos seus imperativos, fixados por via racional. Só assim eles eram categóricos.

Mas será que amar a verdade, é nunca atraiçoá-la, é nunca mentir? Será que a verdade deve ser encarada como um postulado científico, inquebrável?

Kant achava que sim. Em nome de quê? Em nome da dignidade humana, em nome da razão. Para ele o imperativo categórico da verdade era inquestionável, ainda que isso beneficiasse quem não merecesse e prejudicasse os fracos e pobres, e causasse sofrimento.

Mas será mesmo assim? Será que não é legítimo mentir a criminosos e a ditadores que perseguem e atormentam inocentes? Será que devemos revelar ao moribundo a verdade da sua situação?

A resposta humanista tem que ser não. A verdade que causa sofrimento desnecessário ao moribundo ou a pessoas violentadas, é crueldade. Não mentir ao assassino e ao terrorista que sequestra, é colaboracionismo cruel e tolo. Os «imperativos categóricos» podem e devem ser quebrados, em determinadas situações. A verdade não pode estar sempre acima do amor que devemos aos outros.

Há muitos casos em que a verdade tem que ser defendida a tudo o custo, ainda que isso nos cause lágrimas, desgosto e até sofrimento. Não podemos, por exemplo, negar a verdade científica para conforto próprio. Não podemos teimar em ver-nos como seres especiais, criados à imagem de Deus, em vez de seres descendentes de símios.

Mas essa não é uma regra absoluta. Também há ocasiões e situações em que a mentira é legítima, em que certas verdades factuais podem e devem ser omitidas em nome do amor.