terça-feira, fevereiro 23, 2010


O HOMEM DIVIDIDO

1 PRÓLOGO

Do panteon dos mistérios siderais,
Onde emanações do Grande Sol Central
Postam-se como guardiães das virtudes
Que conduzem à humana ascensão,
Algum ente consagrado à Liberdade,
Por indulgência e afeição,
Ouvindo meus clamores,
Há de vir da eternidade
Trazer-me inspiração
E afastar os meus temores.

— Ó Liberdade!
Venho mundo afora te buscando,
E aqui, nesta planície iluminada,
Onde a verdejante vida se inclina,
Reverenciando a brisa fresca
Que desliza em seu dorso ondulado,
Tenho, por certo, estar em teus domínios.
E, assim pois, longe dos olhares e
Do bulício frenético da cidade grande,
Venho a ti clamar:

Dá-me asas abarcantes
E faze-me pairar
Tão alto que a fímbria de meu manto
Não pressinta a névoa úmida
Que se eleva do mar de ismos
Que divide o destino humano.

Dá-me o olhar penetrante do condor
Para ver além do confronto e,
Se me faltarem elevação e mérito
Para beber no brilho intenso de teu foco,
Permite-me, por mínimo,
Vislumbrar o halo que sobeja de tua fronte.

Ó Liberdade!
Ampara aquele que te ousa buscar.
Estende tua mão... Mas vê!
Perdoa-o já!
Ele mora na Terra da Porta
Com Cadeado de Chave,
Cujo misterioso segredo,
Meu Deus...! Ninguém sabe...!

Não permitas, ao te encontrar,
Que proceda como tantos
Que te cantam, te dizem, te amam,
Mas só conhecem cada transitória máscara
Que te serve no carnaval da história .
Suspeito ... Que o labirinto de Creta
Foi antiga advertência
Aos que tentaram te buscar.

E agora,
Cercado de tanto erro e tanto medo,
Vendo o teu nome falseado
E tanto sangue em vão derramado,
Chego também a temer
E receio teu enigma decifrar.

Ó Liberdade!
Ampara aquele que te ousa buscar.
Ele mora na Terra da Porta
Com Cadeado de Chave,
Cujo misterioso segredo,
Meu Deus...! Ninguém sabe...!

Calei a mente febril.
Deixei perder-se a vista
Sob a luminosidade difusa
Da vastidão sossegada,
Almejando salvadora musa.

Então, bem refrescante aragem
Carregada de aroma celeste
Sacramentou aquela paragem,
Furtando-me do devaneio agreste

Branda, compassada e feminina voz
Vinda do distante fundo da planície,
Onde o céu e a terra confabulam,
Disse, melodiando a quietez da hora:

— Engano vosso, viajante do tempo!
Muito longe estais dos meus paços
Aqui, por mais calmo e luzente
Que pareça o dia,
Tudo conspira e compete,
Quase não me posso ter presente.

Ide ao recôndito de vosso ser,
Onde não chega o turbilhão
Das emoções tempestuosas,
Nem domina o preconceito,
Onde o silêncio é majestade,
Lá, minha assistência tereis.

Sou sua mais próxima obreira,
Da Liberdade — a mensageira.
Quando houverdes de uma noção iluminar,
Serei a chama de vossa lanterna...
Minha voz em vossa mente irá ressoar,
Falarei em vossa morada interna.

Quero tocar vosso todo,
Convencer vossa razão.
Encantar vosso coração!
Quero que minhas palavras
Vos atinjam como fanfarras marciais,
E que, pondo-vos em alerta,
De vós não escape sequer uma nota.

Quero vos servir
Como a luz do peregrino
Que indaga a escuridão.

Quero que vossa carruagem,
Puxada por parelhas nervosas,
Avance pela estrada,
Atirando para os lados
A lama que se formou
Por causa do vosso pranto.

Quero vos ver livre
Das vagas aterradoras,
Do caminho tortuoso,
Do barro escorregadio,
Do abismo escabroso,
Do futuro erradio.

Quero, enfim, vos ver deslizando
Pela esteira da espiral caminho,
Que se abre demandando
A Liberdade, que um dia perdestes
Nos becos do mundo em desalinho.

Tudo que vos disser,
Certamente já foi dito
Por quantos me antecederam:
Cada tempo tem sua crise,
Cada crise tem seu trato.
Agora, nesse novo tempo
Posso abrandar o recato.

Quando um Mestre vem a vós,
Sói-lhe penoso suportar
As sombras do vosso mundo,
E vós, mal conseguis manter-vos
Na intensidade de seu campo.
Como Ele sempre pode descer
E vós podeis subir um pouco mais,
Ambos vão ao limite possível.
Mas, sobra ruído no intervalo.
O que Ele vos revela
Não é bem o que entendeis,
O que Ele vos tem a dar,
Excede ao que podeis receber.

O néctar do Olimpo ser-vos-á servido
Conforme a medida de vossa taça.
O finito não compreende o infinito.

Aquietai-vos, alma;
Descortinai a vida.
Logo, dareis com os caminhos
Que à Liberdade conduzem.

Súbito,
Soturno silêncio
Assaltou aquele sítio.
Nuvens escuras e pesadas
Espreitavam o entorno.
Pairava suspeita no ar
Reduzido a bafo morno.

O verde, há pouco alegre e brilhante,
Ofuscou-se perante o céu enfurecido.
Deixando a cena triste e angustiante.

Contraste, confronto e repente
Alimentavam aquele tempo esquecido,
Profetizando um colapso iminente...

Percebi, logo,
Da fala a justeza
Da sábia Mensageira:
Na densa natureza
A liberdade é passageira.

Cada vivente tem seu cativeiro.
Entre as nuvens e qualquer chão,
Erguem-se muralhas de sutil prisão.
E, quem não há percebido
As cadeias que o sujeitam,
Está refém entorpecido
Dos inimigos que o espreitam.

— Ó Liberdade!
Por mil caminhos vagueias!?
Liberdade! Ilumina a cena!
Das insidiosas cadeias
Desta sorrateira arena,
Em dizeres singelos,
Fala-me dos primeiros elos!

Quando tantos têm seu caminho,
Como único correto e verdadeiro;
Entre dissimulados desvios,
Como esquivar-me daqueles sombrios
E encontrar o derradeiro?

Hesitante, silenciei cogitando:
— Em que empresa me aventurava?
Estaria em busca da liberdade sem fim?
Eu? Ninguém? Simples, incógnito mortal
A quem não acudia nenhum emblema,
Nem faculdade para vazar tão Venerável Portal?

Então, tornou solene a Mensageira:

— Não há o melhor caminho,
Mas um, que a vida sabe
Ser o melhor que vos cabe,
Mesmo tendo aguçado espinho.

Quem se proclama
Detentor do caminho único,
Não sabe da estreita amizade
Do mundo disperso
Pela suprema unidade
De todo universo !

Não sabe que
Em seu gesto reverso,
Descarta o diverso,
Razão do universo!

Não percebe que sua verdade
É versão localizada,
Interpretação circunstanciada,
Farol de chama fugidia
Erguido em costa bravia,
Alimentado pela queima
De variados informes
De contextos enormes
Das emoções e conflitos,
Dia a dia nutridos
Com referências de viveres aflitos.

Coitado! Não sabe
Que verdades são pinturas,
Momentos de formas e cores,
Alegorias de leituras
Que brotam d’alma dos pintores.

Considerai, pois,

Que a diretiva que restringe
Do pensamento — a liberdade,
Que ideias cristaliza
Em colossal esfinge,
Receia a luz da verdade
E o avanço d’alma paralisa.

Fazendo prolongado silêncio,
Continuou em tom de advertência:

— Não olvideis, todos vós !
Viveis no reino da inconstância,
Onde coisa alguma permanece
E, a mais perene substância
Encontra o tempo em que fenece.

O que é do mundo exterior,
Em si, nada vale.
São apenas coisas
Às quais emprestais valor;
Meros substantivos
Que adjetivais a gosto.

Irresponsável permissividade
Para extravasar impulsos inconfessos,
Nada tem com minha instância,
Onde o arbítrio é a precisa habilidade
Para sobrepor-se à circunstância.

Entre arruinados pavilhões
Do edifício interno,
Achareis os originais grilhões
Que vosso viver engendrou,
Quando do mundo externo
Vossa alma se enamorou.

E, por amor,
Um dia, decidiu — SER,
Depois, — ESTAR,
QUERER, TER e FAZER.

Agora, todo arbítrio,
Eis vos na Oficina Sagrada,
Com a testa suada
Ao calor da fornalha,
O malho brandindo
E o ferro ferindo
Em dura batalha.

Na bigorna desfilam os últimos elos,
Rubros ainda da chama forçada
De onde queima secretos anelos...

Se a luz a alma não fascina,
Seguis, a cada golpe valente,
Forjando insidiosa corrente
Que o vosso futuro confina.

Com a voz a decair no silêncio,
Muito deixava a Mensageira
Para demorar em reflexão.

2 ELOS DO AMANHECER
(Ser)

Obstinava-me compreender
Nosso misterioso amanhecer...
Mas a carência de ilustração
Lançou minha alma em aflição,
Tanta, que dirigi silencioso apelo
À divina mensageira.

Não tardou que sua voz suave
Ecoasse em minha mente
Em exultante exclamação:

— Singelo e memorável acontecimento!

E prosseguiu solene:

— No Altar do Infinito,
Onde a Luz celebra a Vida
E o Amor consagra a Forma,
Duas estrelas se uniram...

Deu-se tamanho acúmulo de luz,
Em meio de amenos sons,
Que do intenso fulgor pulsante,
Em amorável acalanto
Raios, chispas e relâmpagos,
Encheram de júbilo aquele recanto.

Então, colossais esferas
De intenso áureo branco brilho,
Vencendo sagrado umbral,
Ganharam desconhecido trilho.

Por mil orbes seguidos,
Foram muitos os sóis a surgir
Espalhados pelo infinito.

Então, éreis Um na Plena Luz,
Energia da vibração última,
Renunciando à eternidade,
Para animar com vosso ardor
Aquela divina atividade
Da mais longa história de amor.

Descendo, mergulhando,
Perdendo o divino sentir,
Onde tudo ao ser oprime;
Por outro sagrado existir,
Destes o vosso éter sublime.

Da gigantesca corrente
Que vos haveria de envolver,
Surgiu, pois, o primeiro elo,
Quando vos fizestes diverso ser!

Agora, eis vos em romaria,
Refém de uma história
Prenhe de conflitos e dores,
Por causa dos muitos valores
Que vos povoam a memória.

O presente são vestígios do passado
Acontecendo pelas ruas do futuro:
Venerável relicário ambulante
Sob o pó de um tempo obscuro,
Ocultando a verdade constante.

Quando recém-nascido,
Iniciando mais uma aventura,
Nada podeis, nada sabeis.
O sistema reinante vos captura,
E o mundo à porta vos trás
Muito do que em breve sereis.

Dá-vos um nome,
Instala o orgulho
E prossegue na faina,
Forjando grilhões.
Desperta apetites,
Seduz com sabores,
Cunha-vos modos,
Inúmeros valores
E muitas noções -
Etílicos vapores,
São todos feitores!

Ser, Estar e Querer,
E mais, Ter e Fazer
São vossos senhores —
Um mundo de ilusões oferecem
Por conta de custosos penhores.

Não vejais nisto consolo,
Mas, vós também sois senhores,
Se o mundo vos intenta plasmar
Ele por vós se deixa moldar.

Em meio a tantas noções
Com diversa roupagem,
Despontam razões
Que empanam a viagem.

Daí, para que não olvideis
Os caminhos da Casa Paterna,
Promove nosso Pai Zeloso
Vosso retorno à gloria eterna.

Envia a todos os quadrantes
Em cruzada pelo mundo ardiloso
Além do Senhor Piedoso,
Seus cavaleiros andantes
E mais, Mestres, Profetas e Anjos
Para acudir leais aspirantes,
Conforme apropriados arranjos.

Sois a estirpe de Prometeu.
Partistes todos da mesma fonte,
Rumando a secreto horizonte,
E, por mais que diversa a trama,
Tendes igual sorte no drama,
Pouco importa rumo ou sucesso,
Aguarda-vos triunfante regresso!

Ser ou não ser
Demanda decisão.
Para serdes livres,
Não ser é imposição.

Eis, certamente, uma questão.
Em cartesiano pensar
Dizei apenas: Eu Sou.
Reportando-vos à essência infinita,
Porque a qualidade tudo limita.

Estar restringe o Ser;
Não sois Paulo, nem Anita,
Apenas estais João ou Maria.
Nome, cultura, ocupação,
São transitórios estados,
Experiências de Deus em ação.

De todo muito convém
Ser e Estar não nivelar,
O primeiro vem na frente,
O segundo segue atrás.
Ser é só presença,
Estar é condição.

O que sois, não suspeitais —
Estar encobre a verdade.
Entre Ser e Estar
Há vosso arbítrio em ação.

Operar com liberdade
Não produz libertação.
O arbítrio, na verdade,
Ou vos leva à salvação,
Ou vos deixa em aflição.

Considerai,

Nesta inebriante cadeia,
A chama que ilumina
É a mesma que incendeia.

Seguiu-se prolongado silêncio.
Mas, ainda sentia presente a mensageira,
Como se de mim aguardasse
Solene aprovação ou ponderada arguição.
Então, armando-me de coragem,
Projetei na mente minha questão:

— Ó! Sublime Mensageira,
Meu arbítrio não exerci
Quando a vida conheci.
Cheguei ao mundo já cativo
Do sistema que me plasmou.
Percebo pelo que disseste
Que o passado tudo montou.

Então, como me eximir
De antigos passivos,
Para de novo ressurgir
Livre de laços nativos?

— Ó! Viajante, sede diligente.
Quem o pensar traz aferrado,
Qual barco em mar abrigado
No vai-e-vem de previsíveis marés,
Segue embalado pela tradição,
Protegendo-se do ideal revés
Com as grades de eleita prisão.

Nem a submissão de manso cordeiro,
Nem a arrogância de jovem leão.
Sede de vossa nave aplicado timoneiro,
Navegai nas águas claras da razão,

Mantende na gávea,
Atento vigilante,
Na mente um horizonte,
Na mão o sextante.

Conferi a carta, planejai vosso curso.
Terra a vista não garante
Seja a navegação segura,
Que na costa vos surpreende os baixios.

A liberdade, de todos reclama
Constância e guerreira atuação.
Observai, conduzi e controlai.
Quem de si o governo renuncia,
O tormento de cativos vivencia.

Por isso,

Ainda que nobre e limpo,
Coração que não é livre
Não faz trono no Olimpo.

De vossa atual roupagem
Não vos podeis despir,
Porque ela é que dá abrigo
A vosso momentâneo existir.

Mas, sabei,

A liberdade plena
É apanágio divino.
Para ser fruída
Requer da alma
Espaço total:
Um santo graal,
Por fora, vivo luzidio,
Por dentro, generoso vazio.

Entretanto,
Amplos espaços criareis,
Se puserdes no trono a razão
E no altar sublime o coração;

Se não emprestardes excessiva importância
Ao império do credo e da nação,
Nem aos valores semeados
Na inocente infância;

Se não tratardes com paixão vossos desejos,
E com indiferença as opções oferecidas;

Se fizerdes da venerável verdade
Uma Sagrada Hipótese,
Mas, somente hipótese,
Porque apenas podeis tanger
O eterno amanhecer.

Se nunca cerrardes as portas do templo interior
Para uma nova ideia, uma nova crença,
Uma nova graça, uma renovada esperança;

Se, em tudo, vos reservar para mais,
Pondo em cada experiência
Do sempre do tempo sem fim,
Inteiro amor e consciência;

Se empreenderdes sem recear o voo longo,
Mesmo que ameace a tormenta,
E, se sobretudo, deixardes a liberdade alheia
Alcançar a praia e acontecer na areia.

Crede, abnegado viajante!
A liberdade faiscará em vosso coração!
Sereis da Obra coadjuvante,
Saireis da plateia para o palco —
Sereis ator no drama da Criação.


3 ELOS DA CIRCUNSTÂNCIA
(Estar)

Vosso Eu original
Existe além do sangue e das bandeiras.
Tem natureza celestial,
Não o faz cair em dor
O extremo frio glacial,
Nem o fustiga vento desértico abrasador.

Entretanto,
Metido no tempo,
Lançado na terra
Sem como saber,
O Eu gente erra
Em circunstância
Que pouco conhece.
Com a liberdade restrita,
Ofusca-se a substância:
Estar - ao Ser limita.

Sois por demais memórias,
Divino relicário
Repleto de lembranças,
Refém de trajetórias
Traçadas por heranças.

Neste ilusório lado da existência
Estais da circunstância prisioneiros,
Acumulando experiência
Em distintos cativeiros,
Ora, iluminados, exultantes, maviosos,
Exalando frescor e fragrâncias sutis;
Ora, tenebrosos, tristes, ruidosos,
Bafejando calor e odores ruins.

Da atividade reinante
Advêm consequências
Que alimentam cada instante
E configuram circunstâncias,
Onde o nada é só ausência
E o acaso, ignorância.

Em vosso mundo dual
Ser de Estar é impossível separar
Não sois sem estar,
Nem estais sem serdes.
Movei-vos entre estes extremos:
Se sois mais, estais menos.

Considerai vossas limitações:
Se o brilho excessivo da luz
Vos ofusca a visão,
As sombras, por outro lado,
Confundem a percepção.
Entre os extremos de vossa realidade,
Só apreendeis a metade.

Quem a razão põe a ferros
Na enseada da convicção,
Contenta-se com as sombras
Vislumbradas do porão,
E priva-se do panorama
Que a gávea proporciona.

Sois o Homem Dividido
Açoitado por incertezas.
À vossa volta ecoam sons que não ouvis,
Brilham luzes que não vedes.
Sois quase surdo, quase cego.
E, mesmo a fundo examinando
Concluís, ainda, assaltado por incertezas.

Vossa ciência se nutre do parece,
Do provável, do viável, do possível,
Porque o fato é só um ato
Do real transitório,
Encontro de circunstâncias
Convocado por consequências.

Contudo, o guerreiro no caminho
Rejeita o abrigo das muralhas
Que protegem o dogma — da questão,
E se entrega a duras batalhas
No campo aberto da razão.

Viveis à sombra da incerteza,
A garimpar a natureza,
Esperando em algum pedaço
Encontrar um traço.
Aquela coisa certa,
Sobre a qual não pese dúvida ...
Mas que, de certo, vossas limitações
Hão de transformá-la em incerteza, também.

Não por acaso,
As circunstâncias vos trazem
Alegrias e tristezas —
A chama que ilumina
É a mesma que incendeia.

Um dia, para apressar vosso retorno
Ao esplendor da Casa Paterna,
Quis piedoso mentor
Persuadir-vos pelo temor —
Engendrou a danação eterna
Com terríveis circunstâncias.

Um lugar de sofrimento sem fim
Com línguas de fogo lambendo o jardim,
Sem piedade e sem perdão,
Sem as calmas tardes de verão,
Sem o alento do amor materno...
Deu-se, assim, a invenção do inferno.

Essa didática equivocada,
Talvez para a época, adequada,
Fez do misericordioso Senhor,
Um Deus temível e vingador.

Firmou-se, daí, a falsa premissa
De que dádivas ou cruel fardo,
Vindos como prêmio ou castigo
Enviados por nosso Pai amigo,
Fosse o Seu plano de justiça.

Fábula!

Trama incompatível
Com o infinito amor
Do Supremo Doador,
Jamais severo ou brando julgador!

Pois...

Conforme providencial arranjo,
As almas de ordem inferior a anjo
Colhem em leiras que preparou
Os frutos que seu arbítrio semeou.

Logo, Aquele que vos dotou
Com atributos do original poder,
Que vos acolheu em Seu amoroso ninho,
E vos permitiu perdoar e ofender,
Não vos daria prêmio ou castigo
Pela escolha de bom ou mau caminho.

Nem mesmo o abjeto percurso
Desconsidera o Plano Divino,
Que dispõe do necessário recurso
Para reconduzir o desatino.

Quando aceitastes aqui nascer,
Ficastes livres para errar,
E prosseguir errando,
Porém, na Luz, fadados a crescer,
Conforme celestial comando.

Podeis ignorar esta vocação,
Mesmo, retardá-la por muito tempo,
Mas não podeis detê-la para sempre:
Ela é vossa primordial aspiração.

Reconsiderai, afinal,
De forma mais real,
A invenção do inferno:
Um lugar do Eu interno,
Sem o terror das fornalhas,
Sob o fragor de batalhas
Travadas no coração,
Pleno de fogo sagrado,
Consumindo todo pecado,
Levando-vos à redenção.

Presos na matriz da ilusão,
Viveis produzindo ações
Que geram consequências,
Que configuram circunstâncias,
Que particularizam situações,
Que respondem por ações.
Assim, permaneceis no tempo,
Orbitando circunstâncias.

Está em vós,
Manter-vos submisso,
Equidistante do centro,
Girando em círculo,
Repetindo experiências;
Ou mover-vos em espiral,
Distanciando-vos do centro,
Expandindo a consciência.

Cada época tem seu mundo,
Cada mundo tem seu mestre,
Cada dia, sua verdade,
Cada aflito, seu regaço.

A liberdade de Ser
Tem secreta passagem
Que só vós podeis alcançar -
Quando, mergulhado em silêncio,
Ouvindo apelos do coração,
Fazeis escolhas de elevação,
Alijando as criações mundanas
E as limitadas noções humanas.

A liberdade de Estar
Com o mundo compartilhais,
Quando, tangido por apetites,
Ouvindo apelos da razão,
Fazeis escolhas de ocasião.

Assim, num torvelinho de emoções,
Desfilais vossos delírios
Sem levardes em transcendente crítica
A perspectiva de futuros martírios.

Contudo, sendo ou estando,
A Liberdade é o despertar
De um sonho de amor
Num leito de Paz.

E a Paz é a alva tela
Que se oferece ao artista do pincel,
Como aos versos do poeta,
A branca folha de papel.
É o intervalo que se abre,
Que permite, mas, sobretudo,
É o intervalo onde nada acontece,
Onde o silêncio é uma prece
Que a vida inteira agradece.

A consciência que transcendeu
Os preconceitos de seu tempo,
Que domou seus apetites,
E pacificou seu coração,
Desfruta liberdade,
Não discrimina entre mestres,
Reconhece deles a verdade
E o amoroso sacrifício.

Sois o Homem Dividido.
Tendes a vocação cósmica
Para integrar-se à Unidade Perfeita.
A realização deste anelo
É o impulso secreto
Que conduz a humana existência.

Sois o Homem Dividido,
Entre o presente e o eterno momento,
Postado no templo,
Entre o trono dourado da auto afirmação
E o altar sublime da auto anulação.

Silenciou a Mensageira,
Retomando em tom maternal:

— Agora, deveis meditar.
Prosseguiremos amanhã.


4 ELOS DO DESEJO
(Querer)

Querer —
É caminho para Ser...
Mas, Ser —
O Querer confunde
E Estar —
O Querer ilude.

Se vos bater o desejo
De visitar o País da Liberdade,
Diferente da comum viagem,
Ouvireis, na gare,
Do chefe o repetido aviso:
Removei a bagagem!
Removei a bagagem!

E, quando fordes admitido à recepção
Nos amplos Salões da Liberdade,
Se vos apresentardes de cálice vazio,
Os anjos de serviço,
Logo, o encherão.
E provareis, de certo,
Do Divino néctar da liberdade.

Mas, se vosso copo contiver
De outra bebida resquício,
Os anjos aguardarão
Até que nele não reste vestígio.
Então, do que trouxestes bebereis:
Dos deleites do evento não fruireis,
Porque vosso querer
Não está no comando.

Sois a fonte de vosso querer.
Não é vossa igreja,
Vizinho ou parente amigo
Que por vos deseja.
Sois vós o senhor desse divino poder.

Ao vosso Querer só vós tendes acesso,
Entretanto, é da natureza do processo,
Que permeando vossa bagagem
Se encontre implantadas noções
Que não viram vosso crivo de triagem.

Mas, se a Liberdade consagrais,
Em qualquer momento
De vossa viagem,
Podeis ponderar
Sobre o que deve ficar.
Para estar no controle,
Vosso interior deve comandar.

Reside em Querer
A oportunidade para escolher
E o poder para fazer.

Quando Querer não vigia,
O arbítrio se perde no labirinto de ilusões
Que a circunstância propicia.
Então, querer vacila
Entre instintos e paixões,
Perseguindo alucinado infrutífera fantasia.

Mas, podeis muito querer
Sem nunca fazer.
Entretanto, só por querer
De todo não vos livrais,
De em tempo responder
Pelo ônus da intenção
Que jaz em simplesmente querer.

Para superar a circunstância,
O Querer atento e consciente
Consulta o coração,
Considerando a importância
Das alternativas presentes
No campo de decisão.

O arbítrio que liberta
É o mesmo que escraviza.

É adequado querer
O que tendes por certo
Deus querer.
Se vós e Ele
Tendes em comum
A mesma eterna essência,
O que segue sua Lei
É o que melhor vos serve.
Porque ouvir, então,
Vosso transitório eu de aparência?

Querer tudo permite,
Quando o desejo que o alimenta
Não excede o valor da ferramenta
Que a circunstância permite ter.
Em baixa terra,
Não se colhe planta
Que só nasce em serra.

Sois reféns de vossas opções.
Se egoísticos quereres
O coração abriga,
A futuras correções
A alma se obriga.

Na ordem estabelecida,
Tem o digno Querer
Caminho certo a percorrer.
Não há prêmio, nem castigo
Por conta do proceder.

Os incidentes de viagem
Advertem o peregrino
Quanto ao correto Querer.
E pelo infortúnio
Agradecei, também, a Deus,
Porque Ele escreveu a Lei
Que tudo conduz
A melhor destino.

Em cada instante,
Do simples cogitar
Ao profundo pensamento,
Do terno sentimento
Aos que trazem constrangimento,
Querer está presente.
Em avaliações conscientes,
Ou às circunstâncias indiferente.

Com ou sem louváveis intenções
O arbítrio exerceis,
Entre variantes definindo,
Responsabilidades vais assumindo,
Cadeias vão se formando,
Elos vão se abrindo.

Desejos ardentes
São paixões inconscientes
Geradas por atritos
De vidas em conflitos —
Incêndio de emoções
Que devastam o coração,
Tudo retendo em penosos grilhões.

Enquanto em vós não desperta
A consciência da Unidade Final,
Querer do coração,
Carregado de sentimento e emoção,
Em tristezas e dores vos aperta
Quando se rompe o elo canal
Com outros seres em procissão.

O amor, porém,
Desejo sereno,
Querer consciente
Do coração ciente
Do caminho de luz
Que a Deus conduz,
A paz vos traz,
E tudo liberta.

Só o amor desonera
E tudo aproxima
Da Unidade Final,
Onde perdas e ganhos
Não se contam
E nem se afeta o total.

Querer abriga
Devoção e desejo,
Que conforme o ensejo,
Em um tempo constroem,
Em outro destroem.

Querer, ou é represa
De sincero propósito de elevação
Que converte infortúnio em esperança,
Ou, correnteza de ódio e vingança
Que vos deixa em custosa perdição.

Se vos pondes a negar perdão,
Da mágoa fazei-vos refém.
Permanecei-vos atados
A quem vos causou ferida.

Quem perdoa
Dispensa misericórdia a si mesmo,
Pois deita ao chão
Inútil fardo que arrasta em vão.

No tempo certo,
Cada um chega
Aonde pôs empenho e atenção;
Seja, revoltado,
Perseguindo caminhos sinistros;
Seja, resignado,
Resgatando adversos registros.

Vosso querer
Deve escolher:
Ou a ilusão — que desvanece,
Ou a verdade — que permanece.


5 ELOS DA POSSE
(Ter)

— Para Estar, há que Ter.
Para Ter querer é preciso.
No Templo da Ascensão,
Posses são colunas
Que sustentam a cúpula dos desejos.
Se excedem em número ou dimensão,
Reduzem da nave o espaço
E prejudicam o exercício da redenção.
Se escassas, a cúpula não sustentam,
Arruína-se o templo e perde-se o passo.

Posses há que terdes
Entre o mínimo e o necessário
Para a vida sustentar,
A aventura apressar
E as alturas alcançar.

Bens são petrechos de viagem
Somados à original bagagem –
Em vossa nave,
Ou são os panos que os ventos empurram,
Ou são os ferros que o avanço seguram.

A posse,
Ou se constitui em poder
Para mais se acumular,
Ou, em ponte para cruzar
O abismo que separa
O Eu dos planos agitados
Do Eu silente
Dos picos nevados.

O que fazeis com o fogo
É do vosso arbítrio;
Mas, observai sempre
Que a chama que ilumina
É a mesma que incendeia.

Muito tem quem pouco deseja.
Mas, quem quer demasiado
Nunca tem o bastante,
A vida passa contrariado
Querendo obter o restante.

Quando Ter é um meio,
A opção é um arbítrio,
Fazer, um exercício
E Querer é decisão.

Quando Ter, em si, é fim,
Fazer não tem porquê,
Mas, no trato de suas coisas,
O proprietário possuído,
Tem seu tempo consumido.

Assim,
Ter para fazer - é a trilha
De quem a espiral palmilha
Buscando horizontes,
Empurrando limites;
Enquanto em círculo vagueia
Centrado em insanos apetites
Quem de - fazer para Ter
A vida permeia.

A posse, seja oriunda
Do trabalho honesto e duro,
Do furto ao escalar de muro,
Do embuste ou da guerra
Que só a insanidade justifica,
Tem marcado vossa Terra
E tudo que nela se edifica.

Desde o campo de batatas
Que a tribo vizinha
Um dia, quis só para si;
Desde o saque de distantes aldeias,
E dos burgos de suplantadas ameias
Com sua gente escravizada,
Até a guerra refinada
Que ao pó a vida reconduz,
Permanece a ganância,
Sem apreço pela cruz,
Expondo a fundo a grosseria
De vossa tresloucada economia.

A cobiça sem escrúpulo
Com endereço pessoal
E requintes de predação
Do mais feroz animal,
Aviltou a civilização
E solapou o social.

Contra a posse compartilhada
Dos bens à vida essenciais
Que vingava nos acampamentos tribais,
Ávidos dominadores sem tino
Impuseram novo arranjo leonino.

Trilhando caminho malvado,
Vossa desalmada economia
A moral deixou de lado,
Quando ao bem deu maior valor
Por ser escasso e procurado,
E não por mais custar
Em insumos e energia.
Pôs entre o custo e o preço
Tanto de distância
Quanto há entre o cientista e o ladrão:
Num extremo age com método e razão,
Noutro, com oportunidade e arrogância.
Num extremo opera o método,
Noutro, a oportunidade..

Sem se importar com a precisão
Dos que se encontram em aflição,
Entendeu normal especular
E registrou essa leitura
Como lei da oferta e da procura.

Para completar esta sandice,
Vossa douta economia
Embarcou no caos de cada dia,
Convivendo com os horrores
Das reações histéricas
Das sensíveis bolsas de valores.

Embarcada no lucro máximo
E no consumo de bugigangas,
Caiu nos braços
Da conduta irracional,
Do caminho imprevisível,
Virou problema global.

Vosso sistema, só por usura,
Inventa necessidade
E a converte em utilidade
Para alimentar a procura.

Desatenta às carências reais,
Produz em completa orgia,
Desperdiçando energia,
E as dádivas ambientais;

Se produz de mais,
Descarta o excesso
Para manter o processo
E manipula o supérfluo.
Não importa a carência...
Para o tempo futuro
Não se estende a prudência.

Vossa civilização
É marcada pela posse —
Bens da terra —
Que os do céu
Não a qualificam, ainda...
Todos têm que ter
Para uso fazer,
Ou só para ter.
Mas, quem não sabe ter,
Não aproveita a posse,
Que de incômodo fardo não passa.

Do sistema sois fácil presa.
A regra é sacar
Do próximo, da natureza...
Encher porões...

Sacar, sacar...
Sem justo ou digno propósito.
Maximizar ganhos
É o que importa.

Nem o encanto de uma flor
Deixais adormecer ao relento,
Tendes que submetê-la à dor
De perecer num aposento.

Se nada vos impedir,
Fareis garimpo no céu
Para estrelas recolher
Nalgum saco de papel;

Tirareis patente do Sol,
E mesmo que deite pranto,
Quem quiser ver arrebol
Pagará royalties por tanto.

Não vos dais conta
Que de nada sois dono,
Que as riquezas do mundo externo
Deixareis ao termo de vossa viagem,
E somente vos seguirão
As joias do Pai Eterno
Guardadas no coração.

Inominável crime
Contra a Liberdade imprime
Quem sob domínio
Mantém o próximo
Disposto em rol
Como coisas de paiol.

Nem mesmo vossos filhos
Podeis considerá-los vossos,
Como se fossem sementes vazias,
Prontas para preencherdes
Com vossas crenças, vossas frustrações,
Vossos medos ou vossas esperanças,
A fim de que se tornem
A árvore dos vossos sonhos.

Vossos filhos
São apenas elos,
Como outros que vos unem
Entre extremos paralelos

Para quem do caminho
Tem notícia,
É grande perda
O tempo gasto em - ter.
No fim, sois mais a coisa
Do que pensais da coisa dono.

Dedicais mais tempo
A tudo que vos cerca
Que a vós próprios.
E quanto mais tendes,
Em inútil labuta
Mais tempo retendes.

O enredo de Ter
Custa-vos caro...
Deveis ponderar
Sobre a utilidade das utilidades:
Separar o útil do fútil
Para aproximar a Liberdade.

Dar em Ter é janela
Que se abre à claridade,
Por isso, quem doa se liberta
E a si mesmo faz caridade.

Antes que o discurso retomasse,
Atalhei a Mensageira:

— A interrupção perdoa-me...

Mas, percebo que
A cada passo,
Deixo rastro
E crio registro
De tudo que faço.
Como poderei desatar tantos laços?

— Praticando ação que não deixa traços.

Respondeu a Mensageira, despedindo-se
Com um gesto de mão.

6 ELOS DA AÇÃO
(Fazer)

A Ordem Cósmica é perfeita
E o Todo tudo engloba.
Não fosse...
Não haveria constância
Nas leis que sustentam o Universo
Em soberana harmonia.

Não cabe ao caos
Ser da ordem negação,
Mas, agitação dos elementos
De instâncias subalternas
Em vias de reordenação.

Portanto, não sejais tolos!
É da Ordem,
Que de registros cósmicos
Nada escape,
E que vossos atos,
Tarde ou cedo,
Em chão se tornem
Do caminho que vos cabe.

Sem ordem no que se faz,
Reina absoluta a incerteza:
Não se estabelece a paz,
Nem a plenitude da beleza.

Se seguis a Lei com arte,
Pondo amor em toda parte,
Fluís na vida sem deixar traço,
E nada vos atrasa o passo.

Conhecer-vos a fundo
E vossos elos com o mundo,
Expõe o caminho de luz
Que à liberdade conduz.

Fazer é a oficina
Onde forjais vossa corrente,
Onde querer é rotina
E o caráter, malho potente.

Impulso nobre ou imundo
Em fazer aparece,
Quando no mundo
Fazer acontece.

O que vos tange,
Não cabe conservar
Para acomodar.
Mas, transformar
Para avançar.

Questionar o querer,
Ponderar a decisão,
Concertar cada ação
É vosso inteiro dever.

Quando querer se turba
Envolto por emoções incontidas,
Por ambições e sentimentos confusos,
A razão plena na ação não se instala;
Querer lúcido ao coração não fala;
Fazer, sem paz e sem luz tudo maltrata
E o vosso rastro aprofunda.

Quando, egoísmo, vaidade
Violência, medo e orgulho
Contaminam vossas ações,
Se abate da abonação
Conquistada sem causar trauma,
O peso advindo das fraquezas da alma.

A glória do mundo não favorece.
A ninguém socorre
A coroa real,
Os galões de general,
A toga ou a cabeleira emproada
De solene magistrado,
O pálio bordado de alto clero,
Ou os andrajos de beato eremita:
Efêmeros estados de ilusão.

Pelo que fizeram
Todos serão
Em justa medida cobrados,
Pela omissão, também,
Porque fizeram ao não fazer.

Porém, favorece
E muito valor tem
A glória dos vencidos,
De seres sofridos;
Da vida crentes,
Do mundo desiludidos.

Se a parábola me permitis,
Vede em breve instante
Os desafios que enfrentam
Destemidos aspirantes
A serviço do meu Templo.

Filhos de um vulcão,
Que um dia explodiu,
Lançado-os pelos ares
Como fragmentos de rocha
Munidos de afiadas arestas.

Duras pedras fumegantes
Irromperam pela floresta,
Cortando plantas e animais
Que se postavam adiante.

Umas caíram sobre encosta
D’outros montes com face exposta
E restaram pelas chuvas castigadas,
Por areia e vento fustigadas.

Outras, porém, cruzando a selva,
Precipitaram-se em raivosa corredeira
Que riscava o sopé do vulcão,
E, sem encontrar descanso,
Seguiram rio abaixo tropeçando.

Depois de muito se baterem,
Como pedras de moinho,
De vasculharem o leito sombrio,
E conhecerem cada curva do rio,
E os acidentes do longo caminho,
Chegaram, finalmente,
A pacificada corrente.

Quando partiram,
Cortando o espaço,
Deslocando obstáculos,
Eram vencedoras.
Depois,sem forças, caídas,
Sem quinas, vencidas,
Tornaram-se pedras roladas,
Incapazes de ferir,
Prontas para servir,
E, como almas sofridas,
Apresentaram-se para o Serviço...

Eis a glória dos vencidos:
Pedras roladas não cortam.

Como nesta prodigiosa nave
Não viajais de todo sozinhos,
Vosso avanço tem por chave
O compromisso com vizinhos.

Caminhais de outras vidas cercado
Pelas vias intrincadas do destino.
Se cumpris o mandamento divino
De viver, libertar e deixar viver,
Pela Paz sereis compensado.

Mas, se por descuido ou ato malvado,
Seguis destruindo o jardim sagrado,
Arrebatando em próprio proveito,
O que a Vida a todos doa por estima;
Subtraís do que a outros anima
E afastai-vos do caminho perfeito.

Verdade que não se testa,
Não dá seguro saber.
Se convence razão,
Não sela convicção.

Mas, a verdade a todos chega,
E a cada um, a seu tempo.
O cientista não precisa ser ateu
Para provar fidelidade à ciência,
Nem o religioso precisa endossar
Todos os pontos da doutrina
Para demonstrar sua fé na crença.

A Liberdade não condiz
Com pacífica aceitação
De noção ou diretriz
Sem vossa indagação.

Se não a desvenda a razão,
Ou, não a sente o coração,
Melhor padecer dúvida cruel
Que possuir saber de aluguel;
Melhor sentir sem bem saber
Que saber sem nada sentir.

Considerai que
A verdade que cala em vosso coração,
Ou que vossa intuição pressente,
Pode ao próximo ser indiferente,
Respeitai, pois e sempre,
Sua sagrada opção.

Fostes feito um sol com luz própria
Para iluminar cada segundo,
E não lua, com luz de cópia
Para se apaixonar pelo mundo.

Vida, amor, paz, opulência
Não limitam interna vivência,
Fazei-o vós, com vossos feitos
E humanos conceitos,
Que fechais as portas do coração
E silenciais a consciência
Para servir a vosso eu de ocasião.

Se Deus vos tem em respeito,
Inda que vazio vosso peito;
Se Ele que é a Lei,
Não vos priva do arbítrio
Ante vossas opções,
Nem impede que vos lanceis
Em loucas missões;
Sequer, tolhe vosso desatino
Em face do próprio destino;
Como ousais tanta arrogância,
Opondo-vos a Ele,
Sustentando preconceitos
E observando defeitos
Que não vos têm importância.

Quando fazer
Para o alto se inclina,
O despertar redentor da alma
Se anima como rastro de fumaça
No alvor do lume,
Que se estica, se esgarça,
E cresce, antecipando
Fogo de sublime volume.

Em incontáveis momentos,
Tendes feito e desfeito
Desatento aos mandamentos,
Porém, a Luz Divina nunca se aflige,
Nem pelo ato de pecado suspeito,
Nem pelo acerto que a derrota corrige.

Fazei como quiserdes,
Está tudo na Lei.
Sois livres para agir
Conforme, contra
Ou além das expectativas do vosso tempo.
Sois livres para pensar o que quiserdes,
Mesmo que vos não permitam
As circunstâncias cometer.

E, mais vos concede
A grandeza da Liberdade:
Sois livres para
Experimentar e errar,
E, inda errando,
Permanecer em erro.

Porém, sois predeterminados
Para ascender na luz
E cumprir vosso desígnio
Nos planos superiores da Vida.

Podeis todos,
Por equívocos ofuscados,
Tentar ignorar esta vocação,
Até, retardá-la por muito tempo,
Mas não ireis detê-la para sempre:
Ela é vosso original desideratum!

Agora...

Que tendes orientação
Para vossa peregrinação
Ao Palácio da Liberdade,
Encetai a viagem.
Lá vos aguarda
Sagrada Irmandade.

Saúdo a Divina Presença
Que em vós espera!
E...Com a glória dos vencidos vos deixo.

7 EPÍLOGO

Doravante,
Não mais ouviria
O canto alentador
Da complacente Mensageira.

Amanhecia.
Da poltrona em frente à janela,
Entregava-me a refletir,
De emoções e sentimentos coberto,
Sobre aquela finda aquarela,
Agora, posta a secar
Ao vento que flui do coração aberto.

A luz inda frouxa do sol em ascenso
Vazava janela adentro,
Deitando-se no cômodo por extenso.

Enquanto a alva cortina,
Entregava-se como pluma,
Ao sopro da brisa entrante,
Vestia-se de ouro a matina,
Dissipando na claridade triunfante
Os vestígios da sorrateira bruma.

Suave aroma silvestre
Pairava na cena.
O silêncio, solene ,
Cedia lentamente ao bulício tímido
Da passarada que concertava o despertar.

Estava absorto, livre, inebriado,
Espalhado no momento,
Encantado com os detalhes
Que tomavam o aposento.

Um canto de sílfides,
Em suave murmúrio, dizia-me:
— Quando uma janela se abre para a luz,
As sombras na sombra se refugiam,
O medo inquietante na claridade se desfaz,
O incerto amanhã em esperança se reduz,
E a alma, então aliviada, abriga-se na paz.

— Tão longa tem sido a invernada,
Por lutas e provas passando,
Entre dor e alegria oscilando,
Que, melhor apressar a jornada
Que esta douda aventura teceu:
Aquém de Deus estão meus eu-s,
Além d’ Ele não há mais nada.

Hoje, no alto da serra,
Minha cidade
Tem rua de terra
E casa de barro
Pintada de branco;
Tem a ponte
Sobre o ribeiro
E a erva que medra
Em seu arco de pedra.

Tem casa alugada
E nobres solares
De ricos senhores.
Tem gente suando
Por minguados tostões,
Alguns são feitores
E muitos,peões.

Mas,

Porque se assinala uma cidade
No alto da serra,
Pertinho do céu,
Que tem rua de pedra,
Casa alugada,
Gente de fábrica,
E ambiciosos senhores
Com muitos favores?

Por quê ?

De que adianta ter por sinal
Antigo brasão de ilustre senhor ?
Ter placa de bronze ?
Ter pano pintado içado no mastro ?

De que adianta ?

De nada vale
Marcar a esfera
Riscando papel,
Criando quimera
Eivada de fel.

Já nação alguma idolatro.
Não lhes canto a glória no mundo,
Não lhes invoco os atos nobres,
Nem lhes maldigo os feitos vis.

Pátrias ?!

São filhas da guerra,
Resultados políticos
Do tomo e do quero,
Arranjo de feras
Com o sangue da Terra,
São no fundo mazelas.

No fim,
O pó das idades
Cobre vales,
Esconde cidades,
Faz-se colina,
Enquanto, embaixo,
O presente soterrado
No passado se perde.

Estou cansado,
Busco o coração do espaço,
A liberdade sem quando,
Sem onde, sem como, sem fim.

Quero a casa vazia,
O quarto sem cama,
A sala sem mobília,
A janela sem vidros,
A porta sem porta.

Quero o descanso
Do sepulcro sem cruz,
Sem cova, sem flores:
A terra nua coberta de luz.

Quero...

Despertar desse sonho fantástico,
Despedir-me dessa vigília maçante,
Dormir adulto e acordar criança.

Que bom, ser como criança!
Ignorar bandeiras,
Desconhecer fronteiras …

Que bom, ser como criança!
Não pertencer a nada,
Não cogitar de esperança,
Ser em tudo apenas ser,
Nem escravo, nem senhor...

Ah ! Viajante,
Como exulto
Em ser Pedro, ser Paulo,
Judas, Pilatos !
Ser Breno, Bruno, Nero, Serafim,
Judeu, chinês, beduíno!
Ser Maria, Mariazinha,
Ana, Anita ...
Ser tudo,
Ser Tu...

Como exulto em sonhar
Teus sonhos de liberdade,
Conduzir tuas bandeiras,
Prantear tuas derrotas,
E celebrar tuas vitórias.

Sou, enfim, ferreiro
A romper o elo
Que me retém prisioneiro
De ilusório castelo.

Quero, agora,
O descanso do guerreiro
No findo dia
De uma batalha perdida;
Que vê a seus pés
Na terra batida,
Corpos sem vida,
Espadas caídas
E lanças partidas;
Tudo restando
No silêncio da tarde,
Sob os raios cansados
Do Sol deitado,
Saudando o ocaso,
E vestindo a esplanada
Com chama dourada.

Quero o descanso
Do cavaleiro valoroso
No findo dia
De um combate perdido,

Que em seu destemor
De guerreiro ardoroso
Cheio de amor,

Ainda acredita,

Que o estandarte da fé
Contra o peito apertado,
Lhe servirá de mortalha
Ou se erguerá em vitória
Na próxima batalha.


Edvard Munch - Vampire (1893)


AS LÁGRIMAS DE UM VAMPIRO



... A última luz da tarde
Foi ao longe se apagando.
Era uma linda estrela
Ao céu retornando.

Deixou a terra para sempre
E tudo se tornou triste e frio.
Meu coração se partiu em pedaços
E restou em meu peito um enorme vazio.

Como eu pude um dia
Sonhar com seu amor?
Meu anjo do céu
Que só conheceu a dor?

Não estava ao meu alcance
E eu não te merecia
Minha alma era tão negra
Que na escuridão se desvanecia.

Mas ela se foi,
Anjo lindo que tanto sofreu.
E a minha vida também se acabou
Com o meu amor que morreu.

O que posso fazer agora
Além de chorar?
Conheci-te tão pouco em vida
Mas nunca deixarei de te amar.

Irei vê-la sempre
Em sua sepultura.
Sobre ela colocarei rosas
E beijarei a terra com doçura.

Como se fossem seus lábios
Que eu tanto amei.
E lágrimas de sangue
Para sempre eu chorarei.

A chuva fina cai
E o frio me envolve
No silencioso cemitério
Onde nada se move.
Eu estou ajoelhado
Diante o túmulo da minha amada.
Somos só eu e ela ,
E mais nada.

Não me resta muita coisa
A não ser dizer-lhe adeus.
Ou melhor, até breve
Mais lindo sonho meu.

Que venha logo o dia
Do nosso feliz reencontro
Minha amada tenha pena
Da alma deste monstro...

“Tu que, como uma punhalada,
Em meu coração penetraste,
Tu que, qual furiosa manada
De Demônios, ardente, ousaste,

De meu espírito humilhado,
Fazer teu leito e possessão
– Infame à qual estou atado
Como o galé ao seu grilhão,

Como ao baralho o jogador,
Como à carniça o parasita,
Como à garrafa o bebedor
– Maldita sejas tu, maldita!

Supliquei ao gládio veloz
Que a liberdade me alcançasse,
E ao veneno, pérfido algoz,
Que a covardia me amparasse.

Ai de mim! com mofa e desdém,
Ambos me disseram então:
'Digno não és de que ninguém
Jamais te arranque à escravidão',

Imbecil! – se de teu retiro
Te libertássemos um dia,
Teu beijo ressuscitaria
O cadáver de teu vampiro!”


Charles Baudelaire


Charles Pierre Baudelaire (1821-1867), poeta francês precursor do Simbolismo, autor de Les Fleurs du Mal, 1857 (As Flores do Mal). Com versos rigorosamente metrificado e rimados, que prefiguram o Parnasianismo, Baudelaire trata de temas e assuntos que vão do sublime ao escabroso, investindo liricamente contra as convenções morais que permeavam a sociedade francesa dos meados do século XIX.

Destacou-se também como crítico de arte, com L'Art Romantique, 1860 (A Arte Romântica), e com as traduções do contista norte-americano Edgar Allan Poe. Entre os ensaios, destacam-se Les Paradis Artificiels,1860 (Os Paraísos Artificiais), sobre a ingestão de drogas e seus efeitos estéticos. A vida de Baudelaire ficou marcada pelos desentendimento como o padrasto, que chegou a enviá-lo à Índia e a submetê-lo a conselho judiciário, visando a recuperá-lo da vida boêmia que levava em Paris.

Diversos poemas de As Flores do Mal foram cortados do livro como imorais, por decisão legal, num processo que só foi anulado em 1949. Na poesia de Baudelaire já se encontram traços que serão dominantes no Modernismo do século XX.

quarta-feira, fevereiro 17, 2010


DUALIDADE

Tu dizes que sou anjo...
Talvez seja, quem sabe?
Mas ... se fosse...
(Alertar-te se faz necessário)
Seria daqueles que caíram
Por vontade ou castigo
Pela esperança, motivados
De sentir as humanas expressões
Da Terra, atraídos pelo chão
Abandonando os etéreos espaços
As luzes e os celestes campos
Ansiosos por paixão.
Não seria daqueles anjos belos
Suaves, perfeitos ...
E sim daqueles rudes, caricatos
Rebeldes, curiosos ...
Confusos, tolos.
Talvez eu, um anjo fora,
Que por ser mais homem
Que anjo,
Preferira cair que subir,
E agora, que é caído,
Permanecer quer assim
Porque assim conheceu
O mais profundo sentimento humano
Aquele que tu, despertaste em mim
O que mais sentir faz
Todas as humanas sensações
E que saber me fez
Que um homem é capaz
De todas as angelicais percepções
O que o faz, mesmo besta,
Um anjo!