quinta-feira, dezembro 29, 2011



FLORBELA ESPANCA


Florbela Espanca trancou-se no quarto. Já passava das 2 da manhã. Que presente poderia querer ela naquele 8 de dezembro de 1930, seu 36º aniversário? Ninguém sabe. Ao marido, Mário Lage, deixou a recomendação de que não fosse incomodada até a manhã seguinte. E de fato nenhuma pessoa o fez, nunca mais. Naquela madrugada, deitada na cama, sem “haver gestos novos nem palavras novas” – como dias antes escrevera pela última vez no que havia intitulado de Diário do Último Ano –, a poeta portuguesa suicidou-se ingerindo dois frascos do barbitúrico Veronal.

Desde então, ela é alvo de extensos estudos e biografias. A fama de transgressora, por ter desafiado os preceitos da sociedade – casou-se três vezes e frequentava a boemia, fumando e bebendo, por exemplo – transformou-se nas nomenclaturas precursora e feminista. E, se o reconhecimento, justamente por ser mulher, foi inferior ao que tiveram seus contemporâneos Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, hoje ocupa imenso destaque nos círculos literários.


Uma flor


Dores e dúvidas, às centenas, sobre díspares perspectivas da existência são tão recorrentes na vida e na obra de Florbela que até norteiam seu primeiro poema, “A Vida e a Morte”, escrito com precoces 8 anos de idade. Em outra frente, engano é reduzir a sofrimentos sua história. A menina miúda, de olhos negros e mente inquieta, experimentou as pequenas e grandes alegrias reservadas a qualquer ser humano.

Quando pequena, compartilhou com satisfação a vida em família, período em que vivia em Vila Viçosa, cidade onde nasceu. Mãe tinha duas: Antônia da Conceição Lobo e Mariana Toscano. A primeira, de sangue; a segunda, de criação.

Acontece que Mariana, a mulher legítima de João Maria Espanca, não podia engravidar. Para ser pai, ele recorreu a uma regra medieval, muito aceita pela sociedade portuguesa da época, que permitia ao homem, nesse tipo de situação, ter com outra os descendentes que seriam adotados pela esposa. A escolhida foi Antônia, empregada da residência, com quem João teve também outro fruto, Apeles Espanca, dois anos mais jovem que Florbela.

Embora trabalhasse na mesma casa, o contato íntimo entre mãe biológica e filha só existiu nos primeiros meses de vida, quando era amamentada. Para a docente e pesquisadora da Unesp Renata Soares Junqueira, autora do livro Florbela Espanca – Uma Estética da Teatralidade (Editora da Unesp), tal fato contribuiu muito para o direcionamento artístico da escritora. “Ela transpôs para os seus poemas a imagem da mulher triste, abandonada pela sorte desde o nascimento”, enfatiza ao mesmo tempo em que adverte para não se cometer o equívoco, todavia, de pressupor que seus relatos são invariavelmente biográficos. “Durante muitos anos a crítica se assenhoreou, com poucas exceções, em identificar nas entrelinhas de toda a poesia eventos da biografia de Florbela. Criou-se, assim, uma enorme confusão entre realidade e ficção. Temos de tomar cuidado para não confundirmos a vida com a obra.”


Primeiros passos


Para a escritora portuguesa, nunca importou se a mulher era vista com inferioridade pela sociedade machista. Se para a maior parte delas cabia apenas concluir a escola primária, Florbela aspirava por mais. Em 1908, aos 11 anos, foi uma das primeiras a ingressar no curso secundário do Liceu de Évora, cidade alentejana para onde seus pais se mudaram a fim de facilitar os estudos da filha.

Nesse mesmo ano, recebeu a notícia da morte de sua mãe Antônia da Conceição, de quem, mais do que características físicas, herdou a doença que viria a lhe perturbar todos os próximos anos: a neurastenia, causadora de transtornos psicológicos e muitas dores de cabeça.

Ainda adolescente, três eram as suas paixões: o irmão, com quem mantinha profundos laços fraternos; o pai, com quem dividia o gosto pela fotografia; e o colega de estudo Alberto Moutinho, um ano mais velho e o primeiro marido, em cerimônia oficializada em 1913, na data do aniversário de 19 anos da escritora.



Amar perdidamente


De matrimônio estabelecido, não é surpresa que Florbela não fosse a esposa subserviente. Dona de um temperamento forte, só fazia o que lhe agradava, principalmente escrever. “Ela era incapaz de viver submissa a um homem, por mais que o amasse. Não aceitava que o amor fosse o confinamento da mulher. E, mesmo casada, sempre lutou para publicar seus versos, atividade condenada por seus maridos”.

Mas amar, justamente, era o motor propulsor da escritora. Seja o que demonstrou nos versos, no esforço para publicar o primeiro título, Livro de Mágoas, em 1919, seja o carnal propriamente dito. Certo é que as maiores transformações de sua vida vieram à tona a partir dos 23 anos.

Em Lisboa, onde ingressou na Faculdade de Direito, viveu com intensidade a boemia e travou contato com outros autores, como José Schimidt Rau e Vasco Caméliet. Mas foi lá, todavia, que sofreu um grande dissabor: um aborto espontâneo. O acontecimento, seguido de uma profunda crise neurastênica e a instabilidade emocional da autora, resultou no fim do casamento, em 1921.

Recuperada, Florbela apaixonou-se por Antônio Guimarães, oficial de artilharia da Guarda Republicana. Foi com ele que se casou em junho do mesmo ano. Mais uma vez, o amar a alimentava. Sentimento este que é agudo em sua obra e inato nas publicações subsequentes, Livro de Soror Saudade (1923) e Charneca em Flor (1930), em versos como: “Eu quero amar, amar perdidamente! / Amar só por amar: Aqui… além… / Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente… / Amar! Amar! E não amar ninguém!”.

Mas o novo casamento durou pouco mais de três anos, até 1925, período marcado por um segundo aborto involuntário e novas crises de saúde. O amar, embora contido em toda a obra, revelava-se na vida real mais turbulento do que nos versos.

Antes mesmo de oficializar o segundo divórcio, porém, Florbela passou a dividir uma casa com sua mais nova paixão: o médico Mário Lage. Em sua companhia, sofreria a maior perda: a morte do irmão, Apeles, em 1927, em um acidente com o hidroavião que ele pilotava.


Sou eu!


Florbela está entregue às graves crises da doença que lhe acomete desde a adolescência. E, se não bastasse, é diagnosticada com edema pulmonar. Mesmo assim, fuma e emagrece demais. Alegra-se com flores e livros. O ano é 1930, o último.

Sem querer pertencer a qualquer estilo literário, continua a produzir incessantemente contos, traduções de romances franceses, e a colaborar em revistas femininas. Em seus versos, deixa perpassar o erotismo que revoluciona ao trazer a mulher ao domínio da relação. O que também provoca um olhar de desconfiança e preconceito da crítica.

Todavia, a Florbela Espanca de carne e osso não se importa com mais nada. É dela a melhor definição de quem foi e ainda existe: “O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais, há em mim uma sede de infinito; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudades… sei lá de quê!”



Inatividade em Esboço


Estou aposentado.
Enfim terminei. Ponto final.
Restou-me o céu estrelado
E as flores do meu quintal.

Subi ao cume da montanha escura
Da Vida e Morte... Enorme ascensão:
Uns mil metros de altura
Acima do reles chão.

Lançando um olhar profundo
Dessa altura sobre-humana,
Vi quanto é pequeno o mundo
E grande a tragédia humana

Vi a traição e a cobiça
Fazendo festins e bacanais,
No corpo nu e olhos cegos da Justiça,
Às portas dos tribunais.

Vi que a história, um sonho breve,
Na noite imensa e voraz,
Se é tácito quem a escreve,
É a gente que a faz.

Guio-me apenas, pela distante,
Luz ingênua da crença,
Vaga nebulosa errante
Nas trevas da noite imensa...


Mal enxergo pela fenda do véu da ilusão,

Mal caibo em mim mesmo;

Por farol o coração,

Pelo mar, navego a esmo.

segunda-feira, dezembro 19, 2011


"(...) Deus fala de um modo, sim, de dois modos, mas o homem não atenta para isso. Em sonho ou em visão de noite, quando cai o sono profundo sobre os homens, quando adormecem na cama, então lhes abre os ouvidos e lhes sela a sua instrução, para apartar o homem do seu desígnio e livrá-lo da soberba; para guardar a sua alma da cova e a sua vida de passar pela espada."

Jó 33. 14-18


Entre o Sono e Sonho


Entre o sono e sonho,
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim.

Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre —
Esse rio sem fim.


Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"



AB IMO PECTORE


Era uma noite chuvosa — no chão molhado eu dormia

E nos meus sonhos atormentados revia

As ilusões que sonhei!

Sonhei que vivia...

Meu Deus ! porque não morri ?

Porque do sono acordei ?


Sou eu ! que não esqueci

As noites que não dormi,

Que não foi uma ilusão

Sou eu que sinto morrer

A esperança de viver....

No fundo do coração !


Tudo bem que tu rias das esperanças,

Das minhas loucas lembranças,

Que me corroem assim,

Ou então no silêncio da madrugada, com medo

Chorarias em segredo

Uma lágrima por mim ?


Dorme, meu coração! em paz esquece

Tudo, tudo que amaste neste mundo!

Antes do sonho, uma prece,

Não interrompa meu dormir profundo!


Meu triste coração, dorme na noite calma,

Dorme no peito meu!

Do derradeiro sonho despertei, e na alma

Tudo! tudo morreu !


Feliz daquele que no livro da alma

Não tem folhas escritas,

E nem saudade amarga, arrependida,

Nem lágrimas negras malditas!


Alma em pranto, sedenta de infinito,

Em amplas visões o universo se abrindo,

Como a brisa fria no céu noturno, como se acordasse com um grito,

Entre os mundos de Deus passei dormindo!

sexta-feira, dezembro 09, 2011


Dizem que finjo ou minto


Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é,
Sentir, sinta quem lê!


Fernando Pessoa



DEZ IX - I


Quase todas as coisas têm o aspecto baço e mudo,

Como que envolvidas por uma densa bruma de incenso;

No alto, uma nuvem, só, ocupando espaço extenso,

Pedaço do céu de veludo.


DEZ IX - II


Caro Poeta, quando te leio, a angústia dolorida

Que te preenche a existência e que em teu coração impera,

Faz-me também sofrer e da alma se apodera,

Como se de dentro de mim ela fosse nascida.

Sinto o que sentes: ora a lágrima sincera

Que foi pela saudade ou pelo amor vertida,

Ora a tristeza, que habita em tua alma, — guarida

Onde a negra legião se aglomera...

Não há nesses versos um sentimento alheio

A dor; neles se encontra a aspereza das pragas;

Há neles ora as ondas do radar de como veio

o morcego, ora a queixa harmônica das águas.. .

Leio os teus poemas; e, em minha alma, quando, os leio,

Vão gemendo, em surdina, a melodia das mágoas. . .

sexta-feira, novembro 25, 2011


SONHANDO ACORDADO


Vou e vou te levando,

Enquanto temos algum tempo,

Sou filho do vento,

Que me ensina a voar,

A luz que me ilumina sai de dentro,

Sem olhos enxergo o que há,

Sinto sem o tato,

O ponteiro do relógio que não marca o segundo de ontem,

O primeiro de hoje está atrasado e não exato,

Decifra o quinto elemento,

Elevando o teu pensamento e não cuspindo no prato.


Examina detalhadamente os pontos de interrogação,

Aonde perdeu, o que ganhou,

O que comeu, aonde defecou,

Já é tempo de entender o ensinamento,

Chegado é o momento,

De aplicar o que aprendeu,

Se é teu ou meu, não mais importa,

Você é que não sabe,

Que a viagem já começou,

O que ficou, ficou,

Virá do céu, virá do mar,

Em forma de homem, em forma de mulher,

Num clipe sem nexo,

Terror retrocesso,

Fumaça do inferno,

Bracelete de colher,

Máquina de lavar.



Estou preso nos teu olhos sem amor,

Finjo que o meu beijo te acalma,

Testo os limites da dor,

Retalho em pedaços a minha e a tua alma.


Não te peço que me conte como é o teu mundo,

Me contento apenas em te encontrar nos meus sonhos,

Mesmo que seja medonho e profundo,

Rindo dessa frágil promessa e do que fomos.


Tipo assim …!?

Tá ligada!!


Aquele sabe como não preciso nem dizer.....


'Durmo' sem nem mesmo ter sono,

Fecho os olhos e de repente você surge como se realidade fosse,

Chego até mesmo sentir o cheiro do teu perfume doce,

E sobre o pano,

Dito lençol,

Suo, me retorço e vivo,

Mais alguns segundos ao teu lado.


Vamos nos encontrar hoje de noite em meu sonho ou no seu, meu amor?

quinta-feira, novembro 24, 2011


O cemitério, o corvo, o verme e o corpo


Quando chega a noite nos túmulos sombrios,

A lua espalha pálida prateada cor,

Dói uma saudade com cada flor,

Rolam cristais com lágrimas em fios,

Tremem as cruzes sobre os leitos frios ,

Por esse império do mais negro horror,

E sobre os corpos hirtos, sem calor

Abrem as asas os corvos bravios.


Ouvem-se os gritos d'agourentas aves,

Que, perpassando da capela as naves,

Ousam da morte perturbar o sono.

Tudo ali dorme; só não dorme a terra,

Porque a terra que o corpo envolve, encerra

Do verme atroz o pavoroso trono.


O cemitério na madrugada


Às cinco da manhã a angústia se veste de branco
E fica como louca, sentada, espiando o mar...
É a hora em que se acende o fogo-fátuo da madrugada
Sobre os mármores frios, frios e frios do cemitério
E em que, embaladas pela harpa cariciosa das pescarias
Dormem todas as crianças do mundo.

Às cinco da manhã a angústia se veste de branco
Tudo repousa... e sem treva, morrem as últimas sombras...
É a hora em que, libertados do horror da noite escura
Acordam os grandes anjos da guarda dos jazigos
E os mais serenos cristos se desenlaçam dos madeiros
Para lavar o rosto pálido na névoa.

Às cinco da manhã... – tão tarde soube – não fora ainda uma visão
Não fora ainda o medo da morte em minha carne!
Viera de longe... de corpo lívido de amante
Do mistério fúnebre de um êxtase esquecido
Tinha-me perdido na cerração, tinha-me talvez perdido
Na escuta de asas invisíveis em torno...

Mas ah, ela veio até mim, a pálida cidade dos poemas
Eu a vi assim gelada e hirta, na neblina!
Oh, não eras tu, mulher sonâmbula, tu que eu deixei
Banhada do orvalho estéril da minha agonia
Teus seios eram túmulos também, teu ventre era uma urna fria
Mas não havia paz em ti!

Lá tudo é sereno... Lá toda a tristeza se cobre de linho
Lá tudo é manso, manso como um corpo morto de mãe prematura
Lá brincam os serafins e as flores, bimbalham os sinos
Em melodias tão alvas que nem se ouvem...
Lá gozam miríades de vermes, que às brisas matutinas
Voam em povos de borboletas multicolores...

Escuto-me falar sem receio; esqueço o amanhã distante
O vento traz perfumes inconfessáveis dos pinheiros...
Um dia morrerão todos, morrerão as amadas
E eu ficarei sozinho, para a hora dos cânticos exangues
Hei de colar meu ouvido impaciente às tumbas amigas
E ouvir meu coração batendo

Tu trazes alegria à vida, ó Morte, deusa humílima!
A cada gesto meu riscas uma sombra errante na terra
Sobre o teu corpo em túnica, vi a farândola das rosas e dos lírios
E a procissão solene das virgens e das madalenas
Em tuas maminhas púberes vi mamarem ratos brancos
Que brotavam como flores dos cadáveres contentes.

Que pudor te toma agora, poeta, lírico ardente
Que desespero em ti diz da irrealidade das manhãs?
A Morte vive em teu ser... – não, não é uma visão de bruma
Não é o despertar angustiado após o martírio do amor
É a Poesia... – e tu, homem simples; és um fanático arquiteto
Ergues a beleza da morte em ti!

Oh, cemitério da madrugada, por que és tão alegre
Por que não gemem ciprestes nos teus túmulos?
Por que te perfumas tanto em teus jasmins
E tão docemente cantas em teus pássaros?
És tu que me chamas, ou sou eu que vou a ti
Criança, brincar também pelos teus parques?

Por ti, fui triste; hoje, sou alegre por ti, ó morte amiga
Do teu espectro familiar vi se erguer a única estrela do céu
Meu silêncio é o teu silêncio – ele não traz angústia
É assim como a ave perdida no meio do mar...
......................................................................................

Serenidade, leva-me! guarda-me no seio de uma madrugada eterna!


Vinícius de Moraes

Rio de Janeiro, 1938

in Novos Poemas
in Antologia Poética
in Poesia completa e prosa: "A saudade do cotidiano"

O deus-verme

Factor universal do transformismo.
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme — é o seu nome obscuro de batismo.

Jamais emprega o acérrimo exorcismo
Em sua diária ocupação funérea,
E vive em contubérnio com a bactéria,
Livre das roupas do antropomorfismo.

Almoça a podridão das drupas agras,
Janta hidrópicos, rói vísceras magras
E dos defuntos novos incha a mão...

Ah! Para ele é que a carne podre fica,
E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!

Augusto dos Anjos

segunda-feira, novembro 07, 2011


Crime e Castigo

outro ciclo se inicia

no centro direita e esquerda de mim uma imagem híbrida distorcida

tive a sorte de nascer homo sapiens com reminiscências um tanto que insuportáveis e não deus

caído por pensar querer questionar não se conformar com um plano que não é meu

teste medonho diante da fraqueza e fragilidade humana

fui arrastado para uma realidade que não soube aceitar

não há cura para essa dor

nem o amor salva

anjo de luz apocalíptico luciférico palhaço da libido e o verdadeiro fornecedor do dito livre-arbítrio

o adversário tentador

quem sutilmente lhe descortinou o véu da ignorância

fui eu que fiz ou você que quis!?

por isso tudo me foi retirado

mesmo como cordeiro imolado

não fui perdoado

não tive como recomeçar

por possibilitar o mundo acordar

credor da energia vital daqueles que me rejeitam

não tive tempo

apenas prazo

mas a contagem não para

eu não tenho data para comemorar

as vezes é matar ou morrer

fui ontem para Lisboa para enterrar Fernando Pessoa

num jazigo banal do Mosteiro dos Jerónimos

junto de reis e nobres

ali em Belém

sabe aquele pastel

que mais parece uma tortinha de creme

surpreendeu-o a morte

a doença que não lhe pertencia

anterior modesta hospitaleira

acertou-o em cheio

a facada da misericórdia a liquidá-lo

de um susto

todo portuga a contragosto

[estética moral metafísica

todo esse comércio sem escrúpulo

inclusive ciência fé amor]

inclusive Eu desço com ele à cova

até Florbela

está-se indefeso ante esse tipo de coisa

mesmo um morto esquivo à companhia

sobre quem sempre quis soltar os cachorros

sem casa sem amor sem título sem dinheiro

detido agora no abismo & no silêncio

ferve a ausência & o mistério que sempre souberam

os iniciados no caminho da serpente

como pode-se verificar na estação dos comboios

sutil impressão pintada a mão nos ladrilhos

que chamamos de azulejos

ou seja aqueles ladrilhos que são azuis.

anjo cego torto da expiação

bode baphomet expiatório da civilização

ele estava esperando

em silêncio sofrendo esperando

entregava-se de carne e alma ao que criava

um livro sem título

um poema amigo

um rabisco quase incompreensível

o dorso amargo de uma fruta que de tão madura estava quase podre

tipo uma vermelha e linda maça que por dentro é outra coisa

linha tênue do sabor e saber

em que se confunde o que presta do que não presta

questão de gosto e diferenciação

charada da vida

como ou não como!?

em que se via o antes agora e depois

expresso em palavras e símbolos talvez sem rumo e quase sem sentido aos profanos e neófitos

provocados ao entrar na nave Mãe

Deus é Pai!?

não mais de ferro seda cetim veludo e aço polido vestido

nem nos eternos pergaminhos amarelados

propagados pelas escrituras ditas sacras

mas construído no ar e espaço tempo deformado

para a viagem do mito & a dúvida dos horizontes

folha seca de bizarra flor negra

exposta a uma tempestade que se multiplica na memória

prorrogada até a última noite do dia da verdade

a um limiar interdito

no fim a fenda do salto quântico do nada

último sussurro e voz seguida ainda de uma outra e ainda de um eco

onde o verbo dissolve todos os elos

o abismo do buraco negro da anti-matéria

onde o prazer é risco de vida

açoitado pelo vento gélido

congelando as asas dos que vivem ziguezagueando no alto

pronunciando palavras aéreas

junto dos minúsculos demônios vermelhos e negros

avançando crescendo

movendo-se

com a precisão milimétrica dos minúsculos planetas

& depois

quebrando-se

perdidos & abismados fragmentos deléterios

emissários alados da morte

sentados no colo do poeta

eu vi o mar & sua serpente sépia & harpias & incubus & sucubus

também elementais que desafiam os pretensos conhecedores do bóson de Higgs

o fervor da pronúncia áspera das águas

de uma palavra que conduza os mortos para o outro mundo

a boca que a loucura gostaria de ter

mar revolto em que o último irmão foi engolido até o fundo abissal

arrastado pelos monstros e seres profundos

cansado de nada encontrar

tudo e nada que não fala tem uma segunda morte

a noite a chuva o dragão sarnento e vesgo

as más notícias que chegam com as águas e impressões oníricas chamadas de sonhos ou pesadelos

tudo com o que não é possível se conciliar nesta breve e efêmera existência

deito e acordo com a palavra na língua enrolada do meu sonho fúnebre

que me fará atravessar & sucumbir como a magra carcaça

do afogado em sua patética mudez tagarela

o poeta unge o acaso com a taça trincada vazia

a dor é a noiva das alegrias!

[atravessar oceanos de sangue enfrentar exércitos sozinho e descer aos infernos sem poder chorar ou implorar pela compreensão incompreensível da energia cósmica universal]

sábado, novembro 05, 2011



POEMIUM INDOMITUX


Cagus profanus vomitus bardus

Arruinadus estragus dus sansanus cerubrus

Consumadus ladus extremus februs desvirtuadus

Amus tus mus nus estus acostumadus

Convexus ladus labirintus inflamadus.

Nausius digestus estomacus

Sangrus lagrimus olhus

Armadurus esqueletus ossus quebrus pedaxus

Cum almus inflamus dormentus

Nux saciadus estus.


Sum verburus estandum

Negrum inux pelum verandum

Lexum horum isisinum nerfititiun langunum solum

Insanum

Esquizium

Lithium

Eum sus

Verbatium incomintum profanum argum palavrus

Perforium lastimus eternus

Façus pus causus dus versus dux amous

Rex

Nirvanus sedalex

Pour amour

Deju vu

Insensitus librus du um

Duvidus du escrivum

Lastimus ius ignorantium

Leponex antipsicoticum fux mentium

Abstratus reverberetium

Visius ex fronteirixus perceptium

Magrus parcelus infimus drogatium

Fux lentus barbarus philosophum estreitus

Labyrynthus sthygmus severus

Rerus animus perfeitus

Sux seum

Estarum aquix

Percebum geniux escribus latentus

Bebum vinum sangrum

Despertus intelectus poetium

Energius distortium ilusium

Fedus podrus merdus du caralius

Vux tomarx nus cus!!!@!??....

sexta-feira, novembro 04, 2011


"Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento."

Clarice Lispector

Despedida



Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão,
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão.

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? - me perguntarão.
- Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras? Tudo. Que desejas? - Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra...)
Quero solidão.


Cecília Meireles



AS COISAS QUE NÃO SE VÊ


Tanto se sofre na morte

Como na ausência se sente:

Se a morte é ausência eterna,

A ausência é morte aparente.


Estive vivo sem viver,

pois a questão não consiste somente em respirar,

se locomover,

e um corpo habitar.



"A morte é passagem para a vida definitiva." (2 Coríntios, 4, 16-18 e 5, 1-10)

"



quinta-feira, novembro 03, 2011


NOVIII


A falta do que está

faltando, sem saber o que

falta nos deixam assim.



Deito querendo levantar,

durmo querendo acordar,

acordo querendo sorrir,

o que será de mim!?


Dias sem dormir,

sem ter com quem falar,

pensando no que escrever,

esperando o que há de vir,

sem nada para contar,

sem vida para viver.


quinta-feira, outubro 27, 2011


X*X%X@

Sempre denso vago devaneio,

longo espiral ali azul amarelado,

espio o sonho suspenso do mergulho surdo

da minha mão esquerda e sombra

num salto ao fim do abismo.

Até aonde você pode ir!?

Me indaga um sem luz;

até o fundo do poço,

onde renuncio ao intuito

de mais um beijo,

neste bosque desgraçado

que me consome aos poucos.


A alma chora, e cresce a dor

da transcendência que se não realiza...

triste, a escutar, pancada por pancada... TOC...TOC...

a sucessividade dos segundos... TIC-TAC....TIC-TAC...

Sim, é a vez!

Chegada é a hora!

Não por favor...

Aqui mora o ódio, e vil se nutre

magra inveja, negro abutre

esfomeado e tragador.

quarta-feira, outubro 26, 2011


Se te Queres Matar

Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por atores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fím?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! ...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?

Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjetividade objetiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente,
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células noturnamente conscientes
Pela noturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atômica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

sexta-feira, outubro 21, 2011


SONHO MEU


Eu trago dentro da alma um sonho maltrapilho,

que vive a mendigar nas portas da ilusão...

estranho sonho morto sem alcançar brilho

e tendo por esquife o próprio coração!

Não é sonho, mas um fantasma em seu exílio, enchendo com suas lágrimas a minha solidão,

mendigo de carinho e luz que segue o trilho de uma cruel saudade, de uma atroz paixão.

Quantas vezes acontece deste sonho triste,

todo em prantos me inundar e com calor insiste,

que o liberte, afinal, em poemas de amor.

Outras vezes, porém, como poema dolorido-versos a arrebentar do coração ferido - meu pobre

sonho explode, em gritos e lágrimas de dor!!


segunda-feira, outubro 17, 2011


ELEGIA (VI-OCTO) ELODIA


6


Em ânsias me debato, em delírios me agito,

Imitando a solidão, insondável e muda,

No desejo da posse auscultando o infinito...


E demoro o olhar a percorrer o espaço

E o espaço, altivo, em chamas se transmuda

Para envolver sutilmente meu casto, gasto, corpo lasso.. .


Tortura-me o desejo das perdidas,

Das que trilham do vício os caminhos largos,

Das que fingem e são apetecidas...

Mas revolta-me o cerco destes muros,

Onde vivo escondido e torturado

Mostrando às outras pensamentos puros.


Envergonha-me a falsa castidade,

Amo, os ímpetos lúbricos, convulsos,

A alvorada da minha mocidade,

Os desejos insanos e propulsos...


Eu que trago na carne a sensação ardente,

Os impulsos de amor, impudicos, bestiais,

Eu que tenho a maldade, impura, da serpente,

E o fruto que tentou nossos primeiros pais...

Eu, que sinto no corpo um fogo incandescente,

Desejos de pecar, violentos e brutais,

Eu que vivo a sonhar arrebatadamente

Os beijos ardentes e sensuais...


Estes são versos que trabalhei à sombra do retiro,

Onde vivo remoendo as emoções que eu sinto,

Levai para o além o languido suspiro

Da mágoa e do pesar que agitam meu instinto.


6


Dois anos que valem vinte,

Sem repouso, sem sossego

Passei vagando entre os homens

Doido, enfebrecido e cego !

Dois anos a mesma imagem!

Dois anos o mesma ideal....

Dois anos por toda a parte

Ébrio de amor procurei-a!

Pelas ruas, pelas praças,

Pelos campos e desertos

Buscando essa esquiva sombra

Levei meus passos incertos!

Quantos lábios me sorriam !

Quanta beleza encontrei !

A quanto amor puro e casto

Voltei o rosto, — passei !

E no entanto pudera

Sem frenesi, sem loucura

Colher a flor perfumada

De modesta formosura

Parar na febril carreira,

Dizer : — basta, a vida é esta,

Quem foge o comum dos seres

Segue uma estrela funesta!


6


Sentimentos carnais, esses que agitam

Todo o teu ser e o tornam convulsivo...

Sentimentos indômitos que gritam

Na febre intensa de um desejo altivo.

Ânsias mortas, angústias que palpitam,

Vans dilacerações de um sonho esquivo,

Perdido, errante, pelos céus, que fitam

Do alto, nas almas, o tormento vivo.



Dor cruel, ó vã tortura !

Ó força inútil, ansiedade humana !

Ó círculos dantescos da loucura !

Ó luta, ó luta milenar, insana !