outro ciclo se inicia
no centro direita e esquerda de mim uma imagem híbrida distorcida
tive a sorte de nascer homo sapiens com reminiscências um tanto que insuportáveis e não deus
caído por pensar querer questionar não se conformar com um plano que não é meu
teste medonho diante da fraqueza e fragilidade humana
fui arrastado para uma realidade que não soube aceitar
não há cura para essa dor
nem o amor salva
anjo de luz apocalíptico luciférico palhaço da libido e o verdadeiro fornecedor do dito livre-arbítrio
o adversário tentador
quem sutilmente lhe descortinou o véu da ignorância
fui eu que fiz ou você que quis!?
por isso tudo me foi retirado
mesmo como cordeiro imolado
não fui perdoado
não tive como recomeçar
por possibilitar o mundo acordar
credor da energia vital daqueles que me rejeitam
não tive tempo
apenas prazo
mas a contagem não para
eu não tenho data para comemorar
as vezes é matar ou morrer
fui ontem para Lisboa para enterrar Fernando Pessoa
num jazigo banal do Mosteiro dos Jerónimos
junto de reis e nobres
ali em Belém
sabe aquele pastel
que mais parece uma tortinha de creme
surpreendeu-o a morte
a doença que não lhe pertencia
anterior modesta hospitaleira
acertou-o em cheio
a facada da misericórdia a liquidá-lo
de um susto
todo portuga a contragosto
[estética moral metafísica
todo esse comércio sem escrúpulo
inclusive ciência fé amor]
inclusive Eu desço com ele à cova
até Florbela
está-se indefeso ante esse tipo de coisa
mesmo um morto esquivo à companhia
sobre quem sempre quis soltar os cachorros
sem casa sem amor sem título sem dinheiro
detido agora no abismo & no silêncio
ferve a ausência & o mistério que sempre souberam
os iniciados no caminho da serpente
como pode-se verificar na estação dos comboios
sutil impressão pintada a mão nos ladrilhos
que chamamos de azulejos
ou seja aqueles ladrilhos que são azuis.
anjo cego torto da expiação
bode baphomet expiatório da civilização
ele estava esperando
em silêncio sofrendo esperando
entregava-se de carne e alma ao que criava
um livro sem título
um poema amigo
um rabisco quase incompreensível
o dorso amargo de uma fruta que de tão madura estava quase podre
tipo uma vermelha e linda maça que por dentro é outra coisa
linha tênue do sabor e saber
em que se confunde o que presta do que não presta
questão de gosto e diferenciação
charada da vida
como ou não como!?
em que se via o antes agora e depois
expresso em palavras e símbolos talvez sem rumo e quase sem sentido aos profanos e neófitos
provocados ao entrar na nave Mãe
Deus é Pai!?
não mais de ferro seda cetim veludo e aço polido vestido
nem nos eternos pergaminhos amarelados
propagados pelas escrituras ditas sacras
mas construído no ar e espaço tempo deformado
para a viagem do mito & a dúvida dos horizontes
folha seca de bizarra flor negra
exposta a uma tempestade que se multiplica na memória
prorrogada até a última noite do dia da verdade
a um limiar interdito
no fim a fenda do salto quântico do nada
último sussurro e voz seguida ainda de uma outra e ainda de um eco
onde o verbo dissolve todos os elos
o abismo do buraco negro da anti-matéria
onde o prazer é risco de vida
açoitado pelo vento gélido
congelando as asas dos que vivem ziguezagueando no alto
pronunciando palavras aéreas
junto dos minúsculos demônios vermelhos e negros
avançando crescendo
movendo-se
com a precisão milimétrica dos minúsculos planetas
& depois
quebrando-se
perdidos & abismados fragmentos deléterios
emissários alados da morte
sentados no colo do poeta
eu vi o mar & sua serpente sépia & harpias & incubus & sucubus
também elementais que desafiam os pretensos conhecedores do bóson de Higgs
o fervor da pronúncia áspera das águas
de uma palavra que conduza os mortos para o outro mundo
a boca que a loucura gostaria de ter
mar revolto em que o último irmão foi engolido até o fundo abissal
arrastado pelos monstros e seres profundos
cansado de nada encontrar
tudo e nada que não fala tem uma segunda morte
a noite a chuva o dragão sarnento e vesgo
as más notícias que chegam com as águas e impressões oníricas chamadas de sonhos ou pesadelos
tudo com o que não é possível se conciliar nesta breve e efêmera existência
deito e acordo com a palavra na língua enrolada do meu sonho fúnebre
que me fará atravessar & sucumbir como a magra carcaça
do afogado em sua patética mudez tagarela
o poeta unge o acaso com a taça trincada vazia
a dor é a noiva das alegrias!
[atravessar oceanos de sangue enfrentar exércitos sozinho e descer aos infernos sem poder chorar ou implorar pela compreensão incompreensível da energia cósmica universal]