‘Todas as
horas do fim’
Documentário sobre Torquato Neto
lança luz sobre produção cultural e a angústia existencial do artista.
Sentado ao
lado de Gal Costa, Torquato Neto está na capa do disco "Tropicália - ou
Panis et Circensis", um dos mais icônicos da música brasileira, e pouco
mais se sabe dele. Quatro anos depois de lançado o disco, um dos letristas mais
importantes do movimento tropicalista se matou, no dia seguinte de seu
aniversário de 28 anos. Entrou no banheiro de casa, ligou o gás e esperou a
morte, enquanto a esposa Ana e o filho Thiago dormiam nos cômodos ao
lado.
Passados 45
anos da morte de Torquato Neto, os diretores Marcus Fernando e Eduardo Ades
lançam "Torquato Neto - Todas as horas do fim". Mesclando entrevistas
com as poucas imagens disponíveis do poeta, os dois viram-se diante de um
impasse, ao perceber que o protagonista Torquato estava se tornando assunto na
boca dos entrevistados. A solução para amarrar o filme e continuar reverberando
as ideias do poeta veio de um dos seus grandes temas de interesse - o cinema.
No
documentário, os diretores partem de um material audiovisual escasso para
preencher essas lacunas e redimensionar seu personagem. Dele existe um único
registro de voz, que se soma e se multiplica em raras aparições como em Nosferatu
no Brasil, de Ivan Cardoso, em que encarna um vampiro torto e libertino em
filme mudo rodado em Super 8.
Uma das
saídas foi emprestar a ele a voz do ator Jesuíta Barbosa. A outra, provocar uma
imersão na cabeça do artista a partir das obras e filmes que a povoavam. As
imagens do cinema novo e do cinema marginal cobrem até mesmo a fala de amigos e
parceiros da obra, em depoimentos exibidos de maneira pouco convencional.
Caretice, afinal, não combinaria com o protagonista.
É sobre a
obra, e não exatamente sobre a vida – ou pelo menos até onde é possível aparar
as intersecções entre elas – que o documentário se dedica.
Aos poucos,
e nas horas e dias seguintes após a sessão, passamos a tropeçar em Torquato
Neto nas lacunas até então despercebidas: na música que cantamos sem atentar
para a autoria, no esforço de tirar a poesia do registro em papel e dar a ela
uma outra dimensão, ou por finalmente encontrar nele um lugar de destaque de
uma cena artística que se desenhava e ainda se desenha.
Como resumiu
o amigo Victor Costa ao fim da sessão, em 28 anos Torquato se projetou não
apenas como um artista, mas como um agitador cultural que compreendeu e foi
absorvido pelo que, muito em breve, seria hoje o que conhecemos como cena
audiovisual, na qual cabe muito daquilo que ele já demonstrava.
Letras e
palavras flutuando na tela, escrita transformada em música e artes visuais, o
corpo como expressão de linguagem e até em artigo de jornal diário para
recorte. Algo nele e em seus contemporâneos contrastava com a imagem que
guardamos dos poetas que o antecederam, como Drummond, João Cabral e Manoel
Bandeira, burocratas bem comportados que se libertava do terno e da gravata
usando tinta e papel.
A poesia de
Torquato, ainda a ser descoberta pelo grande público, é a poesia libertada
deste formato. Uma contradição, portanto, que ele não pôde cantá-la – um
talento que, dizem, jamais alcançou.
Nessa
poesia o artista parece dar sentido ao próprio corpo, esgotado precocemente. O
que sabemos? Que, para ele, a exemplo de muitos artistas mortos precocemente,
não há o que se fazer por aqui quando a obra está acabada.
Mais do que
não poder dizer, a angústia do artista é não ter mais o que dizer, ou fabular,
ou inventar, ou reinventar. Mas quando a obra se esgota? Como identificar seu
epílogo? Sabemos?
De todas as
lacunas, esta é a única que não podemos alcançar.
O que faria
agora, já avô (soube que seu neto assistiu ao filme diversas vezes), se tivesse
acompanhado os colegas Gil, Caetano, Edu Lobo, Gal, Jards e pudesse resumir em poesia
o país que nasceu e morreu com ele em 1972. Um país que, como ele, parece agora
viver tranquilamente todas as horas do fim.
Quem vem do
interior (na cidade onde nasci sobram-nos shoppings, farmácias e barbearias,
mas as livrarias ou desapareceram ou flertam com a falência diariamente)
provavelmente vai se identificar com o protagonista que, leitor que gosta de
andar para absorver o que leu, é confrontado o tempo pela brutalidade do
entorno que a todo momento questiona: para que isso me serve?