A Nossa Vitória de cada Dia
Olhe para todos ao seu redor e veja
o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não
temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende
porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por
não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que não tenha sido
catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as
catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos
temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a
tememos.
Temos evitado cair de joelhos diante
do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e
clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar
mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes.
Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer a sua contextura
de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em
segredo a nossa morte para tornar a nossa vida possível. Muitos de nós fazem
arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a
nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos
disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no
que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gafe.
Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer «pelo menos não fui tolo» e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.
Clarice Lispector, in 'Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres'