MEMÓRIA
Ler um poema é deduzir
referências que o poeta deixa implícitas ou que vamos suprindo por conta
própria, como se junto de cada frase do poema houvesse um asterisco remetendo
para uma nota ao pé da página – só que a nota está em branco, e cabe ao leitor
preenchê-la. Tem um poema de Carlos Drummond de Andrade que parece um dos mais
simples. É o poeminha “Memória” (em “Claro Enigma”, de 1951). Diz o poema:
“Amar o perdido / deixa confundido / este coração. // Nada pode o olvido /
contra o sem sentido / apelo do Não. // As coisas tangíveis / tornam-se
insensíveis / à palma da mão. // Mas as coisas findas, / muito mais que lindas,
/ essas ficarão”.
Quatro estrofes, cada uma com
quinze sílabas métricas, numa cadência 5-5-5 cujo ritmo implacável é reforçado
pelo “ão” com que se encerram. A estrofe inicial não tem mistério: “Amar o
perdido deixa confundido este coração”. À primeira vista é o tema da perda da
pessoa amada, um dos grandes lugares comuns da poesia lírica. Mas eu penso que
Drummond se refere a algo mais sutil: o amor que só brota após a perda. Como
ocorre com a amante do poema “Caso do vestido” (em “A Rosa do Povo”), que
confessa à mulher cujo marido roubou: “Eu não tinha amor por ele / ao depois
amor pegou”. Ou então a fórmula que ele estabelece no poema “Perguntas” (também
em “Claro enigma”), em que o Poeta vê um “fantasma” no espelho trazendo-lhe
recordações da infância e dizendo-lhe, ao se despedir: “Amar, depois de
perder”. O que talvez seja a versão drummondiana para outro lugar comum: “eu
era feliz e não sabia”.
Amar o perdido confunde o coração
do poeta porque insinua a possibilidade de que na verdade só amamos o que não
temos. Nosso objeto preferencial de amor é o sonho, a utopia, o inalcançável –
ou, mais realistamente, o ainda inalcançado. Somos todos Don Juans a quem a
conquista fascina e a posse provoca o tédio. Ou então somos crianças
freudianamente impelidas por pulsões de tal magnitude que nada as satisfaz, nem
mesmo a conquista do objeto desejado. O desejo que não foi satisfeito hoje
nunca poderá ser satisfeito amanhã, porque nesse caso estaremos satisfazendo
apenas o desejo de amanhã. Basta ter desejado em vão por um minuto para
continuar desejando por toda a Eternidade.
O verdadeiro desejo nunca é
satisfeito, porque o que no fundo desejamos é um objeto total, um arquétipo
platônico que funde em si todas as possibilidades daquele ser – e o que obtemos
na vida real é o objeto real, com suas incompletudes e defeitos. É como desejar
o Oceano e poder apenas encher as mãos em concha. Amamos o que é conquistado,
mas amamos ainda mais o que não conquistamos, porque é um sonho que não se
desvalorizou em realidade.
A segunda estrofe do poema
“Memória” de Carlos Drummond de Andrade (em “Claro Enigma”) diz: “Nada pode o
olvido / contra o sem sentido / apelo do Não”. É um poema sobre a perda
amorosa, à primeira vista muito simples, mas a facilidade de Drummond é enganosa.
É preciso deixar claro que o poeta se refere ao Olvido, o Esquecimento. Já vi
esse poema transcrito por aí com o absurdo erro: “Nada pode o ouvido...”
Portanto, o Esquecimento nada
pode contra o apelo absurdo, o apelo sem significado do Não. O Poeta parece
estar dizendo que o Não (a negação, a impossibilidade, a proibição, a ausência,
todos os correlatos dessa idéia básica) tem um apelo sem sentido. Esse “apelo”
do Não, não é uma imagem poética que me diga alguma coisa. Podia ser uma porção
de coisas relativas ao Não, mas... apelo? Posso explicar racionalmente o uso
dessa palavra, mas um verso, como uma piada, não é para ser explicado, é para
ser apreendido num segundo. Se isto não acontece, de nada adianta explicar. O
“apelo do Não”, portanto, é uma imagem poética que me entra por um ouvido e sai
pelo outro.
Mas enfim – o Poeta nos garante
que o apelo do Não existe, e que é algo contra o qual nada pode o Esquecimento,
o Olvido. O Não impõe suas próprias regras às quais não podemos fugir, e à luz
da primeira estrofe (“Amar o perdido deixa confundido este coração”) podemos
aceitar que este Não se refere à perda, à ausência, à impossibilidade de ter ou
de continuar tendo. E contra isto, nada pode o esquecimento. É inútil (ou é
impossível) esquecer a perda, mesmo que ela seja sem sentido.
Analisar um poema desse jeito é
uma coisa chata, que eu comparo com querer interpretar um quadro da Van Gogh
analisando a composição química das tintas.
A gente só deve fazê-lo quando o poema for opaco, quando a gente não
estiver encaixando as frases, quando a conta não fechar. Aí, vale parar e
tentar ler o poema como se fosse a resolução de uma equação, onde cada linha é
um resultado lógico de uma operação invisível que ocorreu na mente do autor
entre uma linha e a seguinte.
A terceira estrofe do poema de
Drummond, “Memória”, diz assim: “As coisas tangíveis / tornam-se insensíveis /
à palma da mão”. Sendo um poema sobre a perda amorosa, a primeira leitura
destes versos refere-se à ausência – nossa mão, que antes sentia a presença de
algo concreto, tocável, tangível, não a sente mais. Vejo uma sutileza curiosa
no uso desta imagem da “palma da mão”.
Porque me parece que o ato de tocar, experimentar, acariciar algo se dá
primeiro pelas pontas dos dedos, que funcionam para nós como as antenas de
alguns insetos. O tato que temos nas pontas dos dedos é muito mais refinado e
mais reconhecedor de diferenças do que a palma da nossa mão. Por que a palma da
mão? Porque ela serve, mais do que para tocar, para reter. Para estabelecer a
posse. Na informalidade dos bate-papos amorosos vangloriamo-nos dizendo:
“Fulana tá aqui, olha, na minha mão” – e estendemos a palma para reforçar. Se
algo não pode mais ser sentido na palma da nossa mão, não nos pertence mais.
Essa imagem me lembra os versos
de outro poema do mesmo livro (“Claro Enigma”), o belíssimo “Campo de Flores”,
onde o poeta diz: “Seu grão de angústia amor já me oferece / na mão esquerda. /
Enquanto a outra acaricia / os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura / e o
mistério que além faz os seres preciosos / à visão extasiada”. Esta imagem da
mão acariciante me evoca os versos sensuais de Bob Dylan em “I Threw it All
Away” (“Eu Joguei Tudo Fora”), canção de 1969: “Um dia eu tive montanhas na
palma da minha mão / e rios que fluíam o dia inteiro...” E vejam com que
delicadeza Drummond passa da mera posse física para a posse em seu sentido mais
pleno, a posse da pessoa total e de tudo que ela inclui, ao dizer que a mão não
acaricia apenas os “cabelos”, mas também a “voz”, o “passo”, a “arquitetura”...
E tem mais. Observem o duplo sentido da palavra
“insensível”. Insensível é aquilo que
não sente (“você é uma pessoa insensível”), e também aquilo que não pode ser
sentido, imperceptível (“houve uma mudança insensível de temperatura”). Portanto, as coisas que antes eram tocadas
com as mãos já não são sentidas – nem sentem.
A ausência, como a presença, é um fenômeno recíproco. Tudo que toca é
tocado. Toda mão que acaricia é também acariciada no mesmo gesto. E tudo que
não podemos sentir também não nos sente.
É como a reciprocidade da dor,
registrada em outro poema do mesmo livro, “A Um Varão, Que Acaba de Nascer”:
“Este é de resto o mal / superior a todos: / a todos como a tudo / estamos
presos. E / se tentas arrancar / o espinho de teu flanco, / a dor em ti rebate
/ a do espinho arrancado”. Quando a ausência se instaura, não existe mais
sofrimento mútuo nem prazer mútuo: apenas a falta de contato entre duas
“coisas” que, mesmo tangíveis, mesmo possíveis de alcançar com a mão, não se
sentem mais uma à outra.
O poema “Memória” de Carlos
Drummond de Andrade (no livro “Claro Enigma”) se encerra com esta singela estrofe:
“Mas as coisas findas / muito mais que lindas / estas ficarão”. É uma estrofe perfeita, em todos os sentidos,
para fechar este poema sobre a perda e a ausência.
É um poema minúsculo e de grande
simetria, mesmo admitindo as variações de ritmo. A simetria é reforçada pela
reiteração de rimas toantes centradas na vogal “I” nas linhas 1 e 2 de cada
estrofe, e na sonoríssima rima em “ÃO” nas terceiras linhas.
O poeta fala da perda daquilo que
foi amado, mas se consola dizendo que existe algo mais importante do que as
coisas lindas: são as coisas findas. “Findas” significa encerradas,
terminadas. As coisas que acabaram, ficarão.
Vejam que belo paradoxo! Nossa sensação
intuitiva é de que se essas coisas se acabaram, não ficaram. Drummond sugere o
contrário. As coisas findas ficarão porque provavelmente se cristalizaram,
despregaram-se da realidade (que é fluxo, transformação, incerteza) e
tornaram-se Forma, Idéia – tornaram-se Memória.
Vejam com que segurança o poeta usa este termo no futuro, “ficarão”. Me
lembra o que disse Mário Quintana: “Esses que aí estão / atravancando meu
caminho / eles passarão / eu passarinho”. É como se dissesse: “eles passarão,
eu ficarei”.
Que passarinho é este que fica?
Penso eu que seja o rouxinol cantado celebremente pelo inglês John Keats, no
poema “Ode To a Nightingale”, que examino no capítulo “S” do “ABC de Ariano
Suassuna”. É o pássaro imortal que canta o mesmo canto por toda a eternidade. É
a memória, que preserva em sua essência as coisas findas. Que na ficção
científica foi assim definida por Frank Herbert (“Duna”): “Arrakis ensina a mentalidade
da faca: cortar aquilo que está incompleto e dizer – Agora está completo porque
termina aqui”.