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sábado, abril 22, 2017
sexta-feira, abril 14, 2017
Drummond e a política
POR ADELTO GONÇALVES EM 18/07/2009 ÀS 08:51 AM
Drummond sempre procurou rebater a
acusação de que havia trabalhado a serviço de uma ditadura, alegando que não
passara de um burocrata. Não é o que os documentos mostram, embora, no fim da
vida, procurasse apagar a nódoa, atribuindo a sua participação na ditadura a
vínculos afetivos
Que o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
sempre procurou passar à posteridade a imagem de um intelectual modernista,
esforçando-se para apagar o seu passado de engajamento na cena política do
País, não é novidade. Mas como usava, ainda que não ostensivamente, as boas
relações de que desfrutava com os poderosos especialmente nas décadas de 30 e
40, isso não havia sido bem delineado até agora. É o que faz o professor
Roberto Said em “A Angústia da Ação: Poesia e Política em Drummond”, ao traçar
um retrato muito mais nítido, sem retoques, do homem Carlos Drummond de Andrade
do que aquele que se tinha até aqui, completando, de certa maneira, a biografia
que José Maria Cançado (1952-2006) escreveu, “Os Sapatos de Orfeu” (São Paulo:
Página Aberta, 1993; Editora Globo, 2006), aliás, o único estudo do gênero que
temos até hoje.
Nesse notável estudo biográfico, Cançado já havia
chamado a atenção para o oxímoro “dessemelhante absoluto”, criado pelo próprio
poeta, que define a personalidade dúbia e hesitante de Drummond, que parecia
não pertencer a nada, mas que, por isso mesmo, mostrava-se “condenado a
participar de tudo”. Com base nisso, Said procura desenvolver a ideia borgeana
do duplo: assim o poeta e o funcionário público Drummond constituiriam uma dupla
personalidade, embora a mão que escrevia um arrojado poema modernista fosse a
mesma que preparava discursos para políticos conservadores que de modernos só
tinham aquilo mesmo: o discurso.
Para o leitor que desconhece a biografia de
Drummond, é preciso que se diga que, mesmo em linhas gerais, o que foi a adesão
do poeta ao grupo político que chegou ao poder com o golpe civil-militar de
1930, que, até hoje, alguns historiadores distraídos ainda chamam de Revolução
de 30. Antes disso, porém, é preciso dizer que esse golpe nada teve de
modernizante no sentido de que tenha representado uma revolução para um Brasil
arcaico. Pelo contrário. Não passou de rearrumação entre elites carcomidas,
pois não há nenhuma prova de que algumas das conquistas trabalhistas que viriam
com a Era Vargas não teriam se dado se a velha política do café-com-leite
tivesse permanecido no poder por mais uma ou duas décadas.
Quem já leu as crônicas de Lima Barreto (“Toda Crônica”, v. I (1890-1919), v.II (1919-1922. Rio de Janeiro: Agir, 2004) sabe como eram odiados os cafeicultores paulistas que mandaram e desmandaram durante a República Velha (1889-1930). Lá se vê, por exemplo, um cronista indignado com os “assaltos” que as elites paulistas faziam às burras do erário nacional, a pretexto de levantar subsídios e empréstimos a juros maternais, que quase sempre não pagavam, embora o café fosse considerado a grande riqueza nacional. Que riqueza era essa que necessitava de tanta subvenção?, questionava o cronista, revoltado.
Quem já leu as crônicas de Lima Barreto (“Toda Crônica”, v. I (1890-1919), v.II (1919-1922. Rio de Janeiro: Agir, 2004) sabe como eram odiados os cafeicultores paulistas que mandaram e desmandaram durante a República Velha (1889-1930). Lá se vê, por exemplo, um cronista indignado com os “assaltos” que as elites paulistas faziam às burras do erário nacional, a pretexto de levantar subsídios e empréstimos a juros maternais, que quase sempre não pagavam, embora o café fosse considerado a grande riqueza nacional. Que riqueza era essa que necessitava de tanta subvenção?, questionava o cronista, revoltado.
O pretexto para o golpe foi que as eleições de 1930
teriam sido fraudadas, com a escolha do paulista Júlio Prestes (1882-1946) para
suceder a Washington Luís (1869-1957). Mas o governo também fazia a mesma
acusação aos oposicionistas da Aliança Liberal. E ambos os lados tinham razão.
Quem podia fraudava: a contagem dos votos dependia da vontade política do
manda-chuva de cada Estado ou região. Depois, em 1932, os oligarcas de São
Paulo tentaram dar o contragolpe, a pretexto de defender a reforma eleitoral e
a convocação de uma Assembléia Constituinte. Que 77 anos depois o governo de
São Paulo ainda convoque a população para comemorar essa derrota é coisa que
causa espanto e que só se explica pela necessidade que as elites têm de
fabricar heróis.
Mesmo assim, este articulista, particularmente,
acredita que, fosse como fosse, o Brasil teria tido um futuro um pouco melhor
se a oligarquia paulista tivesse continuado à frente do País. Pelo menos era
uma gente, ao menos em público, mais refinada e preocupada em construir um
regime democrático, ainda que fosse a democracia dos que vivem no andar de
cima.
Sem dúvida, a facção que afastou temporariamente a
oligarquia paulista do poder político — mas não do poder econômico — era mais
atrasada, de concepções arcaicas. Com Getúlio Vargas (1882-1954), um fazendeiro
da fronteira sulina que havia sido ministro da Fazenda do governo deposto,
acostumado a cometer toda a sorte de arbitrariedades, foi o Brasil profundo que
se instalou no Palácio do Catete e nas demais instâncias do poder, com tudo o
que isso representava: mandonismo, ditadura, perseguições, tortura dos
adversários políticos.
Mas que isto não sirva para dourar os brasões das
elites paulistas: o que unia as facções oligárquicas em luta era a avidez por
propinas, lucros exorbitantes e favores do Estado, sem que se incomodassem com
o fato de que essa política levava à mendicância as classes subalternas ou as
atirava à aventura de uma guerra civil, se isso fosse necessário para defender
seus privilégios. Tal como hoje, para essas elites, o poder sempre representou
um butim a ser dividido.
E foi a uma dessas facções que Drummond colocou a
serviço a sua pena, ajudando-a a alcançar e exercitar o poder, preparando-lhe
um discurso modernizante. Estes são os fatos, ainda que os intelectuais procurem
explicações mais rebuscadas para o ato. Não foi, portanto, um papel de que
alguém, no fim da vida, pudesse se orgulhar. Talvez isso explique por que
Drummond sempre procurou escamotear o passado, como se quisesse reescrevê-lo ou
torná-lo menos importante. Mas que não foi politicamente discreto esse papel,
não foi, ainda que o poeta tivesse uma personalidade tímida.
Como se sabe, Drummond era amigo de adolescência de
Gustavo Capanema (1900-1985), a quem conheceu em 1916 no colégio. Foi Capanema
quem o levou para o funcionalismo público em 1930 e para o Ministério da
Educação e Saúde em 1934. Durante anos, Drummond foi chefe de gabinete do
ministro Capanema, atuando muito mais na sombra como faz todo aquele que ocupa
esse cargo.
Said lembra que Drummond sempre procurou rebater a acusação de que havia trabalhado a serviço de uma ditadura, alegando que não passara de um burocrata. Não é o que os documentos mostram, embora, no fim da vida, procurasse apagar a nódoa, atribuindo a sua participação na ditadura mais aos vínculos afetivos que o ligavam a Capanema.
Said lembra que Drummond sempre procurou rebater a acusação de que havia trabalhado a serviço de uma ditadura, alegando que não passara de um burocrata. Não é o que os documentos mostram, embora, no fim da vida, procurasse apagar a nódoa, atribuindo a sua participação na ditadura mais aos vínculos afetivos que o ligavam a Capanema.
Um exercício de dialética porque o poeta não seria
um homem tão tolo assim que não soubesse o que faziam nos porões do governo a
que servia. Até porque ninguém chega a um alto cargo estatal, se não se render
às exigências do poder.
A importância da obra de Said está em mostrar que as “fissuras vividas” por Drummond não são externas ao seu texto poético, “mas, ao contrário, condições de possibilidade para a sua realização”. De fato, não existia até aqui uma obra que tivesse investigado tão a fundo os envolvimentos do poeta com a política, atividade que começou ainda em Belo Horizonte na década de 1920, quando foi redator-chefe do “Diário de Minas”, órgão conservador, que deixou em 1929 para dirigir a campanha da Aliança Liberal no “Minas Gerais”, jornal oficial do Estado.
A importância da obra de Said está em mostrar que as “fissuras vividas” por Drummond não são externas ao seu texto poético, “mas, ao contrário, condições de possibilidade para a sua realização”. De fato, não existia até aqui uma obra que tivesse investigado tão a fundo os envolvimentos do poeta com a política, atividade que começou ainda em Belo Horizonte na década de 1920, quando foi redator-chefe do “Diário de Minas”, órgão conservador, que deixou em 1929 para dirigir a campanha da Aliança Liberal no “Minas Gerais”, jornal oficial do Estado.
Vitorioso o movimento golpista, Drummond tornou-se
o assessor mais importante do interventor Gustavo Capanema, até que, em 1934,
com a ascensão do amigo a ministro, transferiu-se para o Rio de Janeiro. Como
observa Said, no centro político e cultural da Nação, o poeta iniciou uma
decisiva etapa em sua vida, consolidando sua carreira no funcionalismo, além de
ocupar espaço nos principais jornais da capital da República, especialmente nos
Diários Associados, de Assis Chateaubriand (1892-1968), que, por influência do
todo-poderoso Capanema, pagavam-lhe pela sua colaboração.
No Ministério da Educação, Drummond permaneceria
até 1945, ano em que assumiu, por influência política, obviamente, a Diretoria
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), órgão pelo qual se
aposentou. É de lembrar que, ao final da Segunda Guerra Mundial, Drummond
demitiu-se do cargo, afastando-se do governo Vargas, mas sem romper com o amigo
Capanema. Foi por essa época, quando havia fortes pressões em favor da
redemocratização do País, que teve uma breve e tumultuada passagem pelo jornal
“A Tribuna”, do Rio de Janeiro, órgão do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Como provavelmente logo concluiu que aquilo não iria levar a nada, a não ser a
complicações em sua vida pessoal, retornou ao funcionalismo público, ao mesmo
Sphan.
Resultado de pesquisa desenvolvida junto à
correspondência de Drummond no acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa, do Rio
de Janeiro, este trabalho acadêmico revela também o extenso papel político
exercido pelo funcionário público, estabelecendo sua participação em favores do
Estado a boa parcela de escritores e críticos do Modernismo, desde pedidos de
emprego até interferência direta em projetos ou questões mais complexas, como a
construção do edifício do Ministério da Educação, a cargo de Oscar Niemeyer
(1907) e Lúcio Costa (1902-1998), ou na feitura dos painéis internos do mesmo
prédio, entregues a Candido Portinari (1903-1962).
Diz Said que, ao longo dos anos de 1930 e 1940,
período das cartas pesquisadas, Drummond aparece não só como o poeta de maior
prestígio na literatura brasileira, “mas sobretudo como um intelectual
influente, que, ao se valer de seus poderes na máquina pública, traçava em
torno de si complexas relações de débitos e créditos simbólicos, revertidos,
direta ou indiretamente, para o próprio Estado”. E para si mesmo,
acrescente-se.
Mesmo assim, o poeta nunca se reconheceu como um
intelectual cooptado, como membro de uma “intelligentsia” nem tampouco como
mediador de projetos culturais, diz Said, deixando claro que seus argumentos
convenceram até um crítico do quilate de Antonio Candido (1918) que, ao lhe
conferir uma posição política progressista, defendeu que a inserção nos quadros
públicos estatais não implicaria necessariamente uma submissão ideológica ao
regime nem tampouco uma posição política conservadora. Para Candido, como
chefe de gabinete do ministro da Educação, Drummond teria vivido a fase mais
ativa de sua militância intelectual de poeta comprometido com os ideais de
esquerda.
Said cita também Sérgio Miceli, autor de
“Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil: 1920-1945” (São Paulo: Difel, 1979)
e “Intelectuais à Brasileira” (São Paulo: Companhia das Letras, 2001), que
procurou desconstruir a aura de transgressão absoluta que foi conferida ao
Modernismo, defendendo que o campo literário foi cooptado pelo campo político,
o que incluiria, obviamente, Drummond, apesar do esforço dialético de Antonio
Candido e do próprio poeta em entrevista ao jornal “O Estado de S.Paulo” à
época da publicação do primeiro livro.
Said, porém, preferiu não se alinhar com nenhuma
das duas teses, procurando, isso sim, demonstrar como a trajetória de Drummond
assinala os dilemas a que estavam submetidos os escritores de sua geração. O
resultado é uma imagem de Drummond um pouco diferente daquela que costuma ter
quem apenas se limita ler seus poemas. Nem melhor nem pior, porém, mais humana,
ao expor suas fraquezas e contradições.
Graduado em História pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG) em 1996, Roberto Said tem mestrado (2002) e doutorado
(2006) cursados no Programa de Pós-Gradução em Estudos Literários da Faculdade
de Letras dessa instituição. Realizou estágio de doutorado na Universidade de
Buenos Aires (2004). Concluiu recentemente pesquisa de pós-doutorado (2008) no
Acervo de Escritores Mineiros (UFMG). Tem experiência na área de Letras,
Comunicação e Cultura brasileira, com ênfase em Teoria da Literatura, Literatura
Brasileira, História e Memória Cultural, atuando principalmente nos seguintes
temas: literatura comparada, modernidade, pós-modernidade, filosofia, nação,
biografia, memória cultural, arquivos e acervos literários. Organizou
recentemente o livro “Margens Teóricas: Memória e Acervos Literários” (Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2008).
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