quarta-feira, setembro 12, 2018



‘Todas as horas do fim’


Documentário sobre Torquato Neto lança luz sobre produção cultural e a angústia existencial do artista.





Sentado ao lado de Gal Costa, Torquato Neto está na capa do disco "Tropicália - ou Panis et Circensis", um dos mais icônicos da música brasileira, e pouco mais se sabe dele. Quatro anos depois de lançado o disco, um dos letristas mais importantes do movimento tropicalista se matou, no dia seguinte de seu aniversário de 28 anos. Entrou no banheiro de casa, ligou o gás e esperou a morte, enquanto a esposa Ana e o filho Thiago dormiam nos cômodos ao lado.

Passados 45 anos da morte de Torquato Neto, os diretores Marcus Fernando e Eduardo Ades lançam "Torquato Neto - Todas as horas do fim". Mesclando entrevistas com as poucas imagens disponíveis do poeta, os dois viram-se diante de um impasse, ao perceber que o protagonista Torquato estava se tornando assunto na boca dos entrevistados. A solução para amarrar o filme e continuar reverberando as ideias do poeta veio de um dos seus grandes temas de interesse - o cinema.

No documentário, os diretores partem de um material audiovisual escasso para preencher essas lacunas e redimensionar seu personagem. Dele existe um único registro de voz, que se soma e se multiplica em raras aparições como em Nosferatu no Brasil, de Ivan Cardoso, em que encarna um vampiro torto e libertino em filme mudo rodado em Super 8.

Uma das saídas foi emprestar a ele a voz do ator Jesuíta Barbosa. A outra, provocar uma imersão na cabeça do artista a partir das obras e filmes que a povoavam. As imagens do cinema novo e do cinema marginal cobrem até mesmo a fala de amigos e parceiros da obra, em depoimentos exibidos de maneira pouco convencional. Caretice, afinal, não combinaria com o protagonista.

É sobre a obra, e não exatamente sobre a vida – ou pelo menos até onde é possível aparar as intersecções entre elas – que o documentário se dedica.

Aos poucos, e nas horas e dias seguintes após a sessão, passamos a tropeçar em Torquato Neto nas lacunas até então despercebidas: na música que cantamos sem atentar para a autoria, no esforço de tirar a poesia do registro em papel e dar a ela uma outra dimensão, ou por finalmente encontrar nele um lugar de destaque de uma cena artística que se desenhava e ainda se desenha.

Como resumiu o amigo Victor Costa ao fim da sessão, em 28 anos Torquato se projetou não apenas como um artista, mas como um agitador cultural que compreendeu e foi absorvido pelo que, muito em breve, seria hoje o que conhecemos como cena audiovisual, na qual cabe muito daquilo que ele já demonstrava.

Letras e palavras flutuando na tela, escrita transformada em música e artes visuais, o corpo como expressão de linguagem e até em artigo de jornal diário para recorte. Algo nele e em seus contemporâneos contrastava com a imagem que guardamos dos poetas que o antecederam, como Drummond, João Cabral e Manoel Bandeira, burocratas bem comportados que se libertava do terno e da gravata usando tinta e papel.

A poesia de Torquato, ainda a ser descoberta pelo grande público, é a poesia libertada deste formato. Uma contradição, portanto, que ele não pôde cantá-la – um talento que, dizem, jamais alcançou.

Nessa poesia o artista parece dar sentido ao próprio corpo, esgotado precocemente. O que sabemos? Que, para ele, a exemplo de muitos artistas mortos precocemente, não há o que se fazer por aqui quando a obra está acabada.

Mais do que não poder dizer, a angústia do artista é não ter mais o que dizer, ou fabular, ou inventar, ou reinventar. Mas quando a obra se esgota? Como identificar seu epílogo? Sabemos?

De todas as lacunas, esta é a única que não podemos alcançar.

O que faria agora, já avô (soube que seu neto assistiu ao filme diversas vezes), se tivesse acompanhado os colegas Gil, Caetano, Edu Lobo, Gal, Jards e pudesse resumir em poesia o país que nasceu e morreu com ele em 1972. Um país que, como ele, parece agora viver tranquilamente todas as horas do fim.


Quem vem do interior (na cidade onde nasci sobram-nos shoppings, farmácias e barbearias, mas as livrarias ou desapareceram ou flertam com a falência diariamente) provavelmente vai se identificar com o protagonista que, leitor que gosta de andar para absorver o que leu, é confrontado o tempo pela brutalidade do entorno que a todo momento questiona: para que isso me serve?