quinta-feira, dezembro 29, 2011



FLORBELA ESPANCA


Florbela Espanca trancou-se no quarto. Já passava das 2 da manhã. Que presente poderia querer ela naquele 8 de dezembro de 1930, seu 36º aniversário? Ninguém sabe. Ao marido, Mário Lage, deixou a recomendação de que não fosse incomodada até a manhã seguinte. E de fato nenhuma pessoa o fez, nunca mais. Naquela madrugada, deitada na cama, sem “haver gestos novos nem palavras novas” – como dias antes escrevera pela última vez no que havia intitulado de Diário do Último Ano –, a poeta portuguesa suicidou-se ingerindo dois frascos do barbitúrico Veronal.

Desde então, ela é alvo de extensos estudos e biografias. A fama de transgressora, por ter desafiado os preceitos da sociedade – casou-se três vezes e frequentava a boemia, fumando e bebendo, por exemplo – transformou-se nas nomenclaturas precursora e feminista. E, se o reconhecimento, justamente por ser mulher, foi inferior ao que tiveram seus contemporâneos Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, hoje ocupa imenso destaque nos círculos literários.


Uma flor


Dores e dúvidas, às centenas, sobre díspares perspectivas da existência são tão recorrentes na vida e na obra de Florbela que até norteiam seu primeiro poema, “A Vida e a Morte”, escrito com precoces 8 anos de idade. Em outra frente, engano é reduzir a sofrimentos sua história. A menina miúda, de olhos negros e mente inquieta, experimentou as pequenas e grandes alegrias reservadas a qualquer ser humano.

Quando pequena, compartilhou com satisfação a vida em família, período em que vivia em Vila Viçosa, cidade onde nasceu. Mãe tinha duas: Antônia da Conceição Lobo e Mariana Toscano. A primeira, de sangue; a segunda, de criação.

Acontece que Mariana, a mulher legítima de João Maria Espanca, não podia engravidar. Para ser pai, ele recorreu a uma regra medieval, muito aceita pela sociedade portuguesa da época, que permitia ao homem, nesse tipo de situação, ter com outra os descendentes que seriam adotados pela esposa. A escolhida foi Antônia, empregada da residência, com quem João teve também outro fruto, Apeles Espanca, dois anos mais jovem que Florbela.

Embora trabalhasse na mesma casa, o contato íntimo entre mãe biológica e filha só existiu nos primeiros meses de vida, quando era amamentada. Para a docente e pesquisadora da Unesp Renata Soares Junqueira, autora do livro Florbela Espanca – Uma Estética da Teatralidade (Editora da Unesp), tal fato contribuiu muito para o direcionamento artístico da escritora. “Ela transpôs para os seus poemas a imagem da mulher triste, abandonada pela sorte desde o nascimento”, enfatiza ao mesmo tempo em que adverte para não se cometer o equívoco, todavia, de pressupor que seus relatos são invariavelmente biográficos. “Durante muitos anos a crítica se assenhoreou, com poucas exceções, em identificar nas entrelinhas de toda a poesia eventos da biografia de Florbela. Criou-se, assim, uma enorme confusão entre realidade e ficção. Temos de tomar cuidado para não confundirmos a vida com a obra.”


Primeiros passos


Para a escritora portuguesa, nunca importou se a mulher era vista com inferioridade pela sociedade machista. Se para a maior parte delas cabia apenas concluir a escola primária, Florbela aspirava por mais. Em 1908, aos 11 anos, foi uma das primeiras a ingressar no curso secundário do Liceu de Évora, cidade alentejana para onde seus pais se mudaram a fim de facilitar os estudos da filha.

Nesse mesmo ano, recebeu a notícia da morte de sua mãe Antônia da Conceição, de quem, mais do que características físicas, herdou a doença que viria a lhe perturbar todos os próximos anos: a neurastenia, causadora de transtornos psicológicos e muitas dores de cabeça.

Ainda adolescente, três eram as suas paixões: o irmão, com quem mantinha profundos laços fraternos; o pai, com quem dividia o gosto pela fotografia; e o colega de estudo Alberto Moutinho, um ano mais velho e o primeiro marido, em cerimônia oficializada em 1913, na data do aniversário de 19 anos da escritora.



Amar perdidamente


De matrimônio estabelecido, não é surpresa que Florbela não fosse a esposa subserviente. Dona de um temperamento forte, só fazia o que lhe agradava, principalmente escrever. “Ela era incapaz de viver submissa a um homem, por mais que o amasse. Não aceitava que o amor fosse o confinamento da mulher. E, mesmo casada, sempre lutou para publicar seus versos, atividade condenada por seus maridos”.

Mas amar, justamente, era o motor propulsor da escritora. Seja o que demonstrou nos versos, no esforço para publicar o primeiro título, Livro de Mágoas, em 1919, seja o carnal propriamente dito. Certo é que as maiores transformações de sua vida vieram à tona a partir dos 23 anos.

Em Lisboa, onde ingressou na Faculdade de Direito, viveu com intensidade a boemia e travou contato com outros autores, como José Schimidt Rau e Vasco Caméliet. Mas foi lá, todavia, que sofreu um grande dissabor: um aborto espontâneo. O acontecimento, seguido de uma profunda crise neurastênica e a instabilidade emocional da autora, resultou no fim do casamento, em 1921.

Recuperada, Florbela apaixonou-se por Antônio Guimarães, oficial de artilharia da Guarda Republicana. Foi com ele que se casou em junho do mesmo ano. Mais uma vez, o amar a alimentava. Sentimento este que é agudo em sua obra e inato nas publicações subsequentes, Livro de Soror Saudade (1923) e Charneca em Flor (1930), em versos como: “Eu quero amar, amar perdidamente! / Amar só por amar: Aqui… além… / Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente… / Amar! Amar! E não amar ninguém!”.

Mas o novo casamento durou pouco mais de três anos, até 1925, período marcado por um segundo aborto involuntário e novas crises de saúde. O amar, embora contido em toda a obra, revelava-se na vida real mais turbulento do que nos versos.

Antes mesmo de oficializar o segundo divórcio, porém, Florbela passou a dividir uma casa com sua mais nova paixão: o médico Mário Lage. Em sua companhia, sofreria a maior perda: a morte do irmão, Apeles, em 1927, em um acidente com o hidroavião que ele pilotava.


Sou eu!


Florbela está entregue às graves crises da doença que lhe acomete desde a adolescência. E, se não bastasse, é diagnosticada com edema pulmonar. Mesmo assim, fuma e emagrece demais. Alegra-se com flores e livros. O ano é 1930, o último.

Sem querer pertencer a qualquer estilo literário, continua a produzir incessantemente contos, traduções de romances franceses, e a colaborar em revistas femininas. Em seus versos, deixa perpassar o erotismo que revoluciona ao trazer a mulher ao domínio da relação. O que também provoca um olhar de desconfiança e preconceito da crítica.

Todavia, a Florbela Espanca de carne e osso não se importa com mais nada. É dela a melhor definição de quem foi e ainda existe: “O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais, há em mim uma sede de infinito; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudades… sei lá de quê!”



Inatividade em Esboço


Estou aposentado.
Enfim terminei. Ponto final.
Restou-me o céu estrelado
E as flores do meu quintal.

Subi ao cume da montanha escura
Da Vida e Morte... Enorme ascensão:
Uns mil metros de altura
Acima do reles chão.

Lançando um olhar profundo
Dessa altura sobre-humana,
Vi quanto é pequeno o mundo
E grande a tragédia humana

Vi a traição e a cobiça
Fazendo festins e bacanais,
No corpo nu e olhos cegos da Justiça,
Às portas dos tribunais.

Vi que a história, um sonho breve,
Na noite imensa e voraz,
Se é tácito quem a escreve,
É a gente que a faz.

Guio-me apenas, pela distante,
Luz ingênua da crença,
Vaga nebulosa errante
Nas trevas da noite imensa...


Mal enxergo pela fenda do véu da ilusão,

Mal caibo em mim mesmo;

Por farol o coração,

Pelo mar, navego a esmo.

segunda-feira, dezembro 19, 2011


"(...) Deus fala de um modo, sim, de dois modos, mas o homem não atenta para isso. Em sonho ou em visão de noite, quando cai o sono profundo sobre os homens, quando adormecem na cama, então lhes abre os ouvidos e lhes sela a sua instrução, para apartar o homem do seu desígnio e livrá-lo da soberba; para guardar a sua alma da cova e a sua vida de passar pela espada."

Jó 33. 14-18


Entre o Sono e Sonho


Entre o sono e sonho,
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim.

Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre —
Esse rio sem fim.


Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"



AB IMO PECTORE


Era uma noite chuvosa — no chão molhado eu dormia

E nos meus sonhos atormentados revia

As ilusões que sonhei!

Sonhei que vivia...

Meu Deus ! porque não morri ?

Porque do sono acordei ?


Sou eu ! que não esqueci

As noites que não dormi,

Que não foi uma ilusão

Sou eu que sinto morrer

A esperança de viver....

No fundo do coração !


Tudo bem que tu rias das esperanças,

Das minhas loucas lembranças,

Que me corroem assim,

Ou então no silêncio da madrugada, com medo

Chorarias em segredo

Uma lágrima por mim ?


Dorme, meu coração! em paz esquece

Tudo, tudo que amaste neste mundo!

Antes do sonho, uma prece,

Não interrompa meu dormir profundo!


Meu triste coração, dorme na noite calma,

Dorme no peito meu!

Do derradeiro sonho despertei, e na alma

Tudo! tudo morreu !


Feliz daquele que no livro da alma

Não tem folhas escritas,

E nem saudade amarga, arrependida,

Nem lágrimas negras malditas!


Alma em pranto, sedenta de infinito,

Em amplas visões o universo se abrindo,

Como a brisa fria no céu noturno, como se acordasse com um grito,

Entre os mundos de Deus passei dormindo!

sexta-feira, dezembro 09, 2011


Dizem que finjo ou minto


Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é,
Sentir, sinta quem lê!


Fernando Pessoa



DEZ IX - I


Quase todas as coisas têm o aspecto baço e mudo,

Como que envolvidas por uma densa bruma de incenso;

No alto, uma nuvem, só, ocupando espaço extenso,

Pedaço do céu de veludo.


DEZ IX - II


Caro Poeta, quando te leio, a angústia dolorida

Que te preenche a existência e que em teu coração impera,

Faz-me também sofrer e da alma se apodera,

Como se de dentro de mim ela fosse nascida.

Sinto o que sentes: ora a lágrima sincera

Que foi pela saudade ou pelo amor vertida,

Ora a tristeza, que habita em tua alma, — guarida

Onde a negra legião se aglomera...

Não há nesses versos um sentimento alheio

A dor; neles se encontra a aspereza das pragas;

Há neles ora as ondas do radar de como veio

o morcego, ora a queixa harmônica das águas.. .

Leio os teus poemas; e, em minha alma, quando, os leio,

Vão gemendo, em surdina, a melodia das mágoas. . .