sexta-feira, setembro 30, 2011


HOC EST ENIM CORPUS MEUM e HIC EST CALIX SANGUINIS MEI


O Amor é uma coisa, a Vida é outra.


Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo.


O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço.


Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão covardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de ousadia, são uma raça de romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?


O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, o tapinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas, e descanso. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar.


O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende.


O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado,viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A Vida dura a Vida inteira, o Amor não.


Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.

segunda-feira, setembro 26, 2011


Silêncio em dó menor


Misteriosa expressão da alma das coisas mudas,

Silêncio — imensidão dos enigmas em aberto,

espelho baço trincado onde a tristeza universal se estampa.

Silêncio — de onde brota lá do fundo outro silêncio, na fermentação das dores cruéis, agudas,

solene senhor da treva e noites escuras.

Silêncio — abissal e insondável oceano,

tudo quanto nos teus abismos vive imerso,

tem a secreta voz rouca dos rochedos e o grito histérico das loucas.

És a concentração desconcertante do ser pensante, demasiado humano,

a vida de outros planos e oculta do universo,

a energia invisível das coisas.



Seja engano, talvez, delírio do meu cérebro enfermo,

mas eu compreendo os teus sentimentos profundos

eu te sinto nas anônimas odisséias.

Foste o início de tudo e de tudo és o termo.

Silêncio — concepção primitiva dos mundos,

cosmogonia eteral de todas as idéias.

Silêncio — morna solidão de sintomas medonhos,

pântano negro onde do mal desenvolvem-se os vermes

fonte da inspiração, rio da ausência do som do esquecimento,

lago de saliva da boca sem língua, copo sujo em cujo fundo os demônios dos meus sonhos

postos lado a lado, inanimes, inermes,

fitam de estranho ideal o fulgor opulento.

Ò Silêncio! Ò visão abstrata subjetiva da Morte!

— refúgio passional que eu sempre busco e anseio

hei de recordar . . . as torturas, tonturas e vidas tortas,

pois fazes com que ao teu influxo eu me transporte

ao seio da saudade do leite venenoso, a esse funéreo seio

- esquife onde revejo as ilusões já mortas.




terça-feira, setembro 13, 2011


"Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos."

Inscrição na Capela dos Ossos - Igreja de São Francisco - Évora - Portugal

(Cemitério dos Prazeres - Lisboa - Agosto de 2011)


UP

Um pouco mais de sol e calor — eu era brasa.
Um pouco mais de
blue — eu era além.
Para atingir o céu faltou-me mais uma asa...
Se pelo menos eu permanecesse aquém...

Terror ou paz ? Em vão... Se foi ... Tudo esvaído
Num mar enganador de espuma;
E o grande sonho surgindo da bruma,
O grande voo quase vivido...

Quase o amor, quase a vitória e a chama,
Quase o princípio, o meio e o fim — quase a suprema expansão...quase a explosão..
BIG BANG... Mas na minha alma tudo se inflama... se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo falhou...
— Ai que dor de ser-quase no mundo, dor sem fim... —
Eu falhei entre os mais, falhei em mim,
Asa que se projetou mas não voou...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo conquistei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Do beijo que dei mas não senti...

Do amor que tive mas perdi...

Espanto.... Espanto...

XIII

Eu não sou Eu e nem sou o Outro,

Nem Zero, nem Um.
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de Mim para o Outro.
Sou Tudo e Nenhum.

FIM

Quando eu morrer quero festa,
Rompam os limites da chatice e da caretice —
Não quero presente gente besta,
Chamem dançarinas, palhaços e acrobatas, chega de mesmice.

Que meu caixão vá ao ritmo da música alegre e ora lúgubre,
Conduzido por belas donzelas vestidas de preto e por minha musa.
A um morto nada se recusa,
Eu quero ser cremado e que seja observado o devido ritual fúnebre.