segunda-feira, novembro 29, 2010



Conduta e Poesia


Quando o tempo nos vai comendo com o seu relâmpago quotidiano decisivo, as atitudes fundadas, as confianças, a fé cega se precipitam e a elevação do poeta tende a cair como o mais triste nácar cuspido, perguntamo-nos se já chegou a hora de envelhecermos. A hora dolorosa de ver como o homem se sustém a puro dente, a puras unhas, a puros interesses. E como entram na casa da poesia os dentes e as unhas e os ramos da feroz árvore do ódio. É o poder da idade, ou porventura, a inércia que faz retroceder as frutas no próprio bordo do coração, ou talvez o «artístico» se apodere do poeta e, em vez do canto salobro que as ondas profundas devem fazer saltar, vemos cada dia o miserável ser humano defendendo o seu miserável tesouro de pessoa preferida?
Aí, o tempo avança com cinza, com ar e com água! A pedra que o lodo e a angústia morderam floresce com prontidão com estrondo de mar, e a pequena rosa regressa ao seu delicado túmulo de corola.
O tempo lava e desenvolve, ordena e continua.
E o que fica então das pequenas podridões, das pequenas conspirações do silêncio, dos pequenos frios sujos da hostilidade? Nada, e na casa da poesia não permanece nada além do que foi escrito com sangue para ser escutado pelo sangue.

Pablo Neruda, in "Nasci para Nascer"

sexta-feira, novembro 26, 2010



REVERÊNCIA AO DESTINO



Falar é completamente fácil, quando se tem palavras em mente que expressem sua opinião.
Difícil é expressar por gestos e atitudes o que realmente queremos dizer, o quanto queremos dizer, antes que a pessoa se vá.

Fácil é julgar pessoas que estão sendo expostas pelas circunstâncias.
Difícil é encontrar e refletir sobre os seus erros, ou tentar fazer diferente algo que já fez muito errado.

Fácil é ser colega, fazer companhia a alguém, dizer o que ele deseja ouvir.
Difícil é ser amigo para todas as horas e dizer sempre a verdade quando for preciso.
E com confiança no que diz.

Fácil é analisar a situação alheia e poder aconselhar sobre esta situação.
Difícil é vivenciar esta situação e saber o que fazer ou ter coragem pra fazer.

Fácil é demonstrar raiva e impaciência quando algo o deixa irritado.
Difícil é expressar o seu amor a alguém que realmente te conhece, te respeita e te entende.
E é assim que perdemos pessoas especiais.

Fácil é mentir aos quatro ventos o que tentamos camuflar.
Difícil é mentir para o nosso coração.

Fácil é ver o que queremos enxergar.
Difícil é saber que nos iludimos com o que achávamos ter visto.
Admitir que nos deixamos levar, mais uma vez, isso é difícil.

Fácil é dizer "oi" ou "como vai?"
Difícil é dizer "adeus", principalmente quando somos culpados pela partida de alguém de nossas vidas...

Fácil é abraçar, apertar as mãos, beijar de olhos fechados.
Difícil é sentir a energia que é transmitida.
Aquela que toma conta do corpo como uma corrente elétrica quando tocamos a pessoa certa.

Fácil é querer ser amado.
Difícil é amar completamente só.
Amar de verdade, sem ter medo de viver, sem ter medo do depois. Amar e se entregar, e aprender a dar valor somente a quem te ama.

Fácil é ouvir a música que toca.
Difícil é ouvir a sua consciência, acenando o tempo todo, mostrando nossas escolhas erradas.

Fácil é ditar regras.
Difícil é seguí-las.
Ter a noção exata de nossas próprias vidas, ao invés de ter noção das vidas dos outros.

Fácil é perguntar o que deseja saber.
Difícil é estar preparado para escutar esta resposta ou querer entender a resposta.

Fácil é chorar ou sorrir quando der vontade.
Difícil é sorrir com vontade de chorar ou chorar de rir, de alegria.

Fácil é dar um beijo.
Difícil é entregar a alma, sinceramente, por inteiro.

Fácil é sair com várias pessoas ao longo da vida.
Difícil é entender que pouquíssimas delas vão te aceitar como você é e te fazer feliz por inteiro.

Fácil é ocupar um lugar na caderneta telefônica.
Difícil é ocupar o coração de alguém, saber que se é realmente amado.

Fácil é sonhar todas as noites.
Difícil é lutar por um sonho.

Eterno, é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com tamanha intensidade, que se petrifica, e nenhuma força jamais o resgata.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Os Dois Horizontes

Dois horizontes fecham nossa vida:

Um horizonte, — a saudade
Do que não há de voltar;
Outro horizonte, — a esperança
Dos tempos que hão de chegar;
No presente, — sempre escuro,—
Vive a alma ambiciosa
Na ilusão voluptuosa
Do passado e do futuro.

Os doces brincos da infância
Sob as asas maternais,
O vôo das andorinhas,
A onda viva e os rosais;
O gozo do amor, sonhado
Num olhar profundo e ardente,
Tal é na hora presente
O horizonte do passado.

Ou ambição de grandeza
Que no espírito calou,
Desejo de amor sincero
Que o coração não gozou;
Ou um viver calmo e puro
À alma convalescente,
Tal é na hora presente
O horizonte do futuro.

No breve correr dos dias
Sob o azul do céu, — tais são
Limites no mar da vida:
Saudade ou aspiração;
Ao nosso espírito ardente,
Na avidez do bem sonhado,
Nunca o presente é passado,
Nunca o futuro é presente.

Que cismas, homem? – Perdido
No mar das recordações,
Escuto um eco sentido
Das passadas ilusões.
Que buscas, homem? – Procuro,
Através da imensidade,
Ler a doce realidade
Das ilusões do futuro.

Dois horizontes fecham nossa vida.

Machado de Assis, in 'Crisálidas'

quarta-feira, novembro 24, 2010


ESE GRAN SIMULACRO

Mario Benedetti

Cada vez que nos dan clases de amnesia
como si nunca hubieran existido
los combustibles ojos del alma
o los labios de la pena huérfana
cada vez que nos dan clases de amnesia
y nos conminan a borrar
la ebriedad del sufrimiento
me convenzo de que mi región
no es la farándula de otros
en mi región hay calvarios de ausencia
muñones de porvenir / arrabales de duelo
pero también candores de mosqueta
pianos que arrancan lágrimas
cadáveres que miran aún desde sus huertos
nostalgias inmóviles en um pozo de otoño
sentimientos insoportablemente actuales
que se niegan a morir allá en lo oscuro
el olvido está tan lleno de memoria
que a veces no caben las remembranzas
y hay que tirar rencores por la borda
en el fondo el olvido es un gran simulacro
nadie sabe ni puede / aunque quiera / olvidar
un gran simulacro repleto de fantasmas
esos romeros que peregrinan por el olvido
como si fuese el camino de santiago
el día o la noche en que el olvido estalle
salte en pedazos o crepite /
los recuerdos atroces y los de maravilla
quebrarán los barrotes de fuego
arrastrarán por fin la verdad por el mundo
y esa verdad será que no hay olvido


ESSE GRANDE SIMULACRO

Cada vez que nos dão lições de amnésia
como se nunca houvesse existido
os ardentes olhos da alma
ou os lábios da pena órfã
cada vez que nos dão lições de amnésia
e nos obrigam a apagar
a embriaguez do sofrimento
convenço-me de que o meu território
não é a farândola de outros



Em meu território há martírios de ausência
resíduos de sucessos / subúrbios de luto
mas também singelezas de mosqueta
pianos que arrancam lágrimas
cadáveres que ainda olham de seus hortos
lembranças imóveis em um porão de colheitas
sentimentos insuportavelmente atuais
que se negam a morrer no escuro



O esquecimento está tão cheio de memória
que às vezes não cabem as lembranças
e rancores precisam ser jogados fora
no fundo o esquecimento é um grande simulacro
ninguém sabe nem pode / ainda que queira / esquecer
um grande simulacro abarrotado de fantasmas
esses romeiros que peregrinam pelo esquecimento
como se fosse o caminho de santiago



no dia ou noite em que o esquecimento estale
salte em pedaços ou crepite /
as recordações atrozes e as de maravilhamento
quebrarão as trancas de fogo
arrastarão afinal a verdade pelo mundo
e essa verdade será a de que não há esquecimento

terça-feira, novembro 23, 2010



Ó alma doce e triste e palpitante !
Que cítaras soluçam solitárias
Pelas regiões longínquas, visionárias
Do teu Sonho secreto e fascinante !

Quantas zonas de luz purificante,
Quantos silêncios, quantas sombras várias
De esferas imortais, imaginárias,
Falam contigo, ó Alma cativante !

Que chama acende os teus faróis noturnos
E veste os teus mistérios taciturnos
Dos esplendores do arco de aliança ?

Por que és assim, melancolicamente,
Como um arcanjo infante, adolescente,
Esquecido nos vales da esperança ?
!

Cruz e Souza


Adeus, meus sonhos!

Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!
Não levo da existência uma saudade!
E tanta vida que meu peito enchia
Morreu na minha triste mocidade!
Misérrimo! Votei meus pobres dias
À sina doida de um amor sem fruto,
E minh'alma na treva agora dorme
Como um olhar que a morte envolve em luto.
Que me resta, meu Deus?
Morra comigo
A estrela de meus cândidos amores,
Já não vejo no meu peito morto
Um punhado sequer de murchas flores!


Álvares de Azevedo


Introspecção

Nuvens lentas passavam
Quando eu olhei o céu.
Eu senti na minha alma a dor do céu
Que nunca poderá ser sempre calmo.
Quando eu olhei a árvore perdida
Não vi ninhos nem pássaros.
Eu senti na minha alma a dor da árvore
Esgalhada e sozinha
Sem pássaros cantando nos seus ninhos.
Quando eu olhei minha alma
Vi a treva.
Eu senti no céu e na árvore perdida
A dor da treva que vive na minha alma.

Vinícius de Moraes



EU ESCREVI UM POEMA TRISTE


Eu escrevi um poema triste

E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!

Mário Quintana


A Parte Invisível do Visível

A parte invisível do visível.
De resto conhecer mais o quê?
O Manifesto do Invisível.
Os lobos são a cabeça do anjo que não se vê.
Sangue no Focinho e Covardia.

Gonçalo M. Tavares, in "Investigações. Novalis"

sexta-feira, novembro 19, 2010


Nel mezzo del camin...

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha...

E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje, segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.

Olavo Bilac


CAMPO SANTO

Eis-me afinal de novo entre os meus bons convivas,
Só com meus sonhos, só, com a minha saudade,
E as mortas ilusões e ilusões redivivas
De que o morto passado a alma toda me invade.

Porque se me hão de impor, fortes e decisivas,
As descrenças dos que, sem fé, sem caridade,
Sem esperança, vêm dessas alternativas
De mal fingido amor e fingida piedade?

Sinto-me preso aqui. Entre angústias me envolvo,
- Esfinge que se envolve entre os arcais da Líbia -
Mas o fatal problema entre audácias resolvo:

Alma! que importa a dor que te devora? Exibe-a
Ante a morte que em seus tentáculos de polvo
Mói crânio contra crânio e tíbia contra tíbia!

EMÍLIO DE MENEZES

quarta-feira, novembro 17, 2010


CRACK

The Rolling Stones Of The Hell


Século XXI, novo milênio, tempos modernos... novas definições.
Antigamente craque era aquele jogador bom de bola,
Que com habilidade encantava multidões,
Agora, o crack é outro, mudou até a grafia,
É um subproduto da cocaína que sucumbe os corações,
Que ataca e destrói a família,
Não importando a geografia
Ou a camada social, a devastação é geral.
Crianças tornam-se assaltantes,
Matam por um simples real,
Atacam irmãos, pais e mães, caem os dentes, ficam dementes e nada mais é como antes,
Perde-se completamente a noção do que é normal, do que é moral.

É uma praga social,

A pedra rolante do inferno, a pedra do mal.


E aí!? Sou o crack! Pegue essa lata ou o cachimbo e sinta como é legal!

- Ok! Vamos lá! Vou fumar! Quero ser o tal!

Otário! Você agora é um animal.

Pronto! Fui convidado a entrar e o jovem corpo possuir,

Pelos pulmões já me entranhei, e tudo vou devorar,

Belos músculos atrofiar e tua mente destruir,

Vou deixar teus neurônios arrebentados, modificando todo o seu pensar.

Euforia bateu lá no céu, dopamina em profusão encharcando o cabeção.

Quando o louco efeito cessa, o que mais te resta?

Debater-se em fissura, exigindo uma nova explosão.

Outra vez, tudo de novo, os olhos arregalam como se fossem sair para fora do rosto, volta a excitação da ilusão até saltar as veias da testa.

O sono se perdeu e todo o cansaço desapareceu,

Alimenta-se de viagens paranóicas onde tudo é assombração,

Ligado em falsas sensações, sem noções de higiene, ou sem se preocupar se comeu.

Dependência quase que imediata e ficar muito doidão,

1, 2, 3, 4, 5 segundos. Efeito de curta duração. 1, 2, 3, 4, 5, já passou o pauladão, é fim de festa.

Noiado, alerta: “Me ajude! Não sei mais o que fazer!?”

Coloca novamente uma lata na boca torta até ficar com cara de besta,

Mais uma vez nesse embalo, em espiral decadente... até quase morrer.

Sou a pedra da convulsão, uma parada noiada, a droga da escravidão,

Eu destruo casas, invado famílias desestruturadas,
Tomo seus filhos, e isso é só o começo. Não é alucinação.
Sou mais nociva do que todas as outras drogas já inventadas.

Prazer! Sou o crack!
Se precisar de mim, sou facilmente encontrado,
Eu vivo perto de você, no campo, na cidade e na calçada,
Vivo com os ricos, vivo com os pobres, com os velhos e com a molecada,
Vivo nas ruas e talvez na porta ao seu lado,
Sou feito em laboratório, mas não como você pensa,
Também posso ser feito na cozinha,
O meu poder é impressionante, prove-me e verá,
Prove-me duas vezes e invado a sua alma
Depois de te possuir, você roubará, você mentirá e se prostituirá.
O crime que você cometer para obter meus encantos,
será a dor que você sentirá em seu corpo.
Você esquecerá suas qualidades e virtudes,
Você perderá a consciência e vou moldá-la à minha maneira,
Vou ter tudo de você, a sua aparência e o seu orgulho,

Você olhará no espelho sentindo nojo e pena de si mesmo,

Você irá ficar de quatro e rastejar pelo chão catando os imaginários pedaços,

Na cinza você escurecerá as pontas dos dedos na procura de mais um pouco,

Você irá tossir dia e noite até vomitar,

Os dedos da mão irão queimar e queimar,
Vou estar sempre com você, direto ao seu lado,
Você desistirá de tudo, da sua família, do seu amor,
Dos seus amigos, do seu dinheiro, então você estará sozinho.
Vou tomar e levar, até você não ter mais nada para dar,

Você irá ficar por dentro igual a uma lata vazia,
E quando eu terminar com você, você terá sorte ou azar por ainda estar vivo,

Vida sem Vida,

Vou te transformar em um zumbi, numa caveira ambulante!
Posso lhe trazer mais sofrimento do que palavras podem expressar.

Vem!
Vem! Segure a minha mão, deixe-me levá-lo ao inferno
.

Vem! Deixe-me apresentá-lo ao meu pai, o Diabo.


Tédio

Sobre minh'alma, como sobre um trono,
Senhor brutal, pesa o aborrecimento.
Como tardas em vir, último outono,
Lançar-me as folhas últimas ao vento!

Oh! dormir no silêncio e no abandono,
Só, sem um sonho, sem um pensamento,
E, no letargo do aniquilamento,
Ter, ó pedra, a quietude do teu sono!

Oh! deixar de sonhar o que não vejo!
Ter o sangue gelado, e a carne fria!
E, de uma luz crepuscular velada,

Deixar a alma dormir sem um desejo,
Ampla, fúnebre, lúgubre, vazia
Como uma catedral abandonada!...

Olavo Bilac, in "Poesias"

terça-feira, novembro 16, 2010


Só um Mundo de Amor pode Durar a Vida Inteira

Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo.

O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixonade verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios.Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há,estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço.
Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?

O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida,o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar.

O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende.

O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado,viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não.
Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.

Miguel Esteves Cardoso, in 'Jornal Expresso'


MONÓLOGO DE UMA SOMBRA


“Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!

A simbiose das coisas me equilibra.
Em minha ignota mônada, ampla, vibra
A alma dos movimentos rotatórios...
E é de mim que decorrem, simultâneas,
A saúde das forças subterrâneas
E a morbidez dos seres ilusórios!"

(...)

AUGUSTO DOS ANJOS, in 'Eu e Outras Poesias'.

Inferno

Há no centro da Terra ampla caverna,
Reino imenso dos anjos rebelados,
Lago horrendo de enxofres inflamados,
Que acende o sopro da Vingança eterna.

O seu fogo maldito é sem lucerna,
Que faz trevas dos fumos condensados.
Seus tetos e alçapões, enfarruscados,
Não deixam lá entrar a luz externa.

Silvosos gritos, hórridos lamentos,
Blasfémias, maldições, desata o vício
Bramando, sem cessar, em seus tormentos.

Que imensos réus no eterno precipício
Caindo estão, a todos os momentos!
O Inferno sem fim, fatal suplício.

Francisco Joaquim Bingre, in 'Sonetos'

Frustração

Foi bonito
O meu sonho de amor.
Floriram em redor
Todos os campos em pousio.
Um sol de Abril brilhou em pleno estio,
Lavado e promissor.
Só que não houve frutos
Dessa primavera.
A vida disse que era
Tarde demais.
E que as paixões tardias
São ironias
Dos deuses desleais.

Miguel Torga, in 'Diário XV'

segunda-feira, novembro 15, 2010


A QUE ESTÁ SEMPRE ALEGRE


Teu ar, teu gesto, tua fronte
São belos qual bela paisagem;
O riso brinca em tua imagem
Qual vento fresco no horizonte.

A mágoa que te roça os passos
Sucumbe à tua mocidade,
À tua flama, à claridade
Dos teus ombros e dos teus braços.

As fulgurantes, vivas cores
De tua vestes indiscretas
Lançam no espírito dos poetas
A imagem de um balé de flores.

Tais vestes loucas são o emblema
De teu espírito travesso;
Ó louca por quem enlouqueço,
Te odeio e te amo, eis meu dilema!

Certa vez, num belo jardim,
Ao arrastar minha atonia,
Senti, como cruel ironia,
O sol erguer-se contra mim;

E humilhado pela beleza
Da primavera ébria de cor,
Ali castiguei numa flor
A insolência da Natureza.

Assim eu quisera uma noite,
Quando a hora da volúpia soa,
Às frondes de tua pessoa
Subir, tendo à mão um açoite,

Punir-te a carne embevecida,
Magoar o teu peito perdoado
E abrir em teu flanco assustado
Uma larga e funda ferida,

E, como êxtase supremo,
Por entre esses lábios frementes,
Mais deslumbrantes, mais ridentes,
Infundir-te, irmã, meu veneno!


CHARLES BAUDELAIRE


O POETA E O POEMA

Nenhum poema se faz de matéria abstrata.
É a carne, e seus suplícios,
ternuras,
alegrias,
é a carne, é o que ilumina a carne, a essência,
o luminoso e o opaco do poema.

Nenhum poema. Nenhum pode nascer do

inexistente.
A vida é mais real que a realidade.
E em seus contrastes e seqüelas, funda
um reino onde pervagam
não a agonia de um, não o alvoroço
de outro,
mas o assombro de todos num caminho
estranho
como infinito corredor que ecoa
passos idos (de agora,
e de ontem e de sempre),
passos,
risos e choros — num reino
que nada tem de utópico, antes
mais duro do que rocha,
mais duro do que rocha da esperança
(do desespero?),
mais duro do que a nossa frágil carne,
nossa atônita alma,
— duros pesar de seu destino, duros
pesar de serem só a hora do sonho,
do sofrimento,
de indizível espanto,
e por fim um silêncio que arrepia
a epiderme do acaso:

(...)

Não há poema isento.
Há é o homem.
Há é o homem e o poema.
Fundidos.


Alphonsus de Guimaraens Filho