sábado, outubro 30, 2010


O poeta

I
Quantos somos, não sei... Somos um, talvez dois, três, talvez, quatro; cinco,
(talvez nada
Talvez a multiplicação de cinco em cinco mil e cujos restos encheriam doze terras
Quantos, não sei... Só sei que somos muitos – o desespero da dízima infinita
E que somos belos deuses mas somos trágicos.
Viemos de longe... Quem sabe no sono de Deus tenhamos aparecido como
(espectros
Da boca ardente dos vulcões ou da orbita cega dos lagos desaparecidos
Quem sabe tenhamos germinado misteriosamente do sono cauterizado das
(batalhas
Ou do ventre das baleias quem sabe tenhamos surgido?
Viemos de longe – trazemos em nós o orgulho do anjo rebelado
Do que criou e fez nascer o fogo da ilimitada e altíssima misericórdia
Trazemos em nós o orgulho de sermos úlceras no eterno corpo de Jó
E não púrpura e ouro no corpo efêmero de Faraó.
Nascemos da fonte e viemos puros porque herdeiros do sangue
E também disformes porque – ai dos escravos! não há beleza nas origens
Voávamos – Deus dera a asa do bem e a asa do mal às nossas formas
(impalpáveis
Recolhendo a alma das coisas para o castigo e para a perfeição na vida eterna.
Nascemos da fonte e dentro das eras vagamos como sementes invisíveis o
(coração dos mundos e dos homens
Deixando atrás de nós o espaço como a memória latente da nossa vida anterior
Porque o espaço é o tempo morto – e o espaço é a memória do poeta
Como o tempo vivo é a memória do homem sobre a terra.
Foi muito antes dos pássaros – apenas rolavam na esfera os cantos de Deus
E apenas a sua sombra imensa cruzava o ar como um farol alucinado...
Existíamos já... No caos de Deus girávamos como o pó prisioneiro da vertigem
Mas de onde viéramos nós e por que privilégio recebido?
E enquanto o eterno tirava da música vazia a harmonia criadora
E da harmonia criadora a ordem dos seres e da ordem dos seres o amor
E do amor a morte e da morte o tempo e do tempo o sofrimento
E do sofrimento a contemplação e da contemplação a serenidade ínperecível
Nós percorríamos como estranhas larvas a forma patética dos astros
Assistimos ao mistério da revelação dosTrópicos e dos Signos

Como, não sei... Éramos a primeira manifestação da divindade
Éramos o primeiro ovo se fecundando à cálida centelha.
Vivemos o inconsciente das idades nos braços palpitantes dos ciclones
E as germinações da carne no dorso descarnado dos luares
Assistimos ao mistério da revelação dos Trópicos e dos Signos
E a espantosa encantação dos eclipses e das esfinges.
Descemos longamente o espelho contemplativo das águas dos rios do Éden
E vimos, entre os animais, o homem possuir doidamente a fêmea sobre a relva
Seguimos… E quando o decurião feriu o peito de Deus crucificado
Como borboletas de sangue brotamos da carne aberta e para o amor celestial
(voamos.
Quantos somos, não sei... somos um, talvez dois, três, talvez quatro; cinco,
(talvez, nada
Talvez a multiplicação de cinco mil e cujos restos encheriam doze terras
Quantos, não sei… Somos a constelação perdida que caminha largando estrelas
Somos a estrela perdida que caminha desfeita em luz.

Vinícius de Moraes

quinta-feira, outubro 28, 2010


Sangue

Versos
escrevem-se
depois de ter sofrido.
O coração
dita-os apressadamente.
E a mão tremente
quer fixar no papel os sons dispersos...

É só com sangue que se escrevem versos.

Saúl Dias, in "Sangue"

terça-feira, outubro 26, 2010



Tenho Tanto Sentimento


Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"


Feliz Só Será


Feliz só será
A alma que amar.

Estar alegre
E triste,
Perder-se a pensar,
Desejar
E recear
Suspensa em penar,
Saltar de prazer,
De aflição morrer —
Feliz só será
A alma que amar.

Johann Wolfgang von Goethe, in "Canções"


Aceita o Universo



Aceita o universo
Como to deram os deuses.
Se os deuses te quisessem dar outro
Ter-to-iam dado.

Se há outras matérias e outros mundos
Haja.

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos" Heterônimo de Fernando Pessoa


Ignoto Deo


D. D. D.

Creio em Ti, Deus; a fé viva
De minha alma a Ti se eleva.
És: - o que és não sei. Deriva
Meu ser do Teu: luz... e treva,
Em que - indistintas! - se envolve
Este espírito agitado,
De Ti vem, a Ti devolve.
O Nada, a que foi roubado
Pelo sopro criador
Tudo o mais, o há-de tragar.
Só vive do eterno ardor
O que está sempre a aspirar
Ao infinito donde veio.
Beleza és Tu, luz és Tu,
Verdade és Tu só. Não creio
Senão em Ti; o olho nu
Do homem não vê na Terra
Mais que a dúvida, a incerteza,
A forma que engana e erra.
Essência! a real beleza,
O puro amor - o prazer
Que não fatiga e não gasta...
Só por Ti os pode ver
O que, inspirado, se afasta,
Ignoto Deo, das ronceiras,
Vulgares turbas: despidos
Das coisas vãs e grosseiras
Sua alma, razão, sentidos,
A Ti se dão, em Ti vida,
E por Ti vida têm. Eu, consagrado
A Teu altar, me prostro e a combatida
Existência aqui ponho, aqui votado
Fica este livro - confissão sincera
Da alma que a ti voou e em ti só espera.


Almeida Garrett, in 'Folhas Caídas'

segunda-feira, outubro 25, 2010


Um Anjo à vista

Teus pés na lama, a pele suja, a tua face escura,
Olha só humano, que penosa e nervosa condição!
A dúvida te afoga, juntamente com tua falta de convicção na tua vida futura,
Para de sofrer: Vontade, necessidade ou percepção,
Para lutar, falar e pensar nessa agrura,
Nenhum Anjo, não!

Teus Deuses e Deusas? Santos e encantos? São brinquedos de tu madre e dos teus padres.
Verdade, mentira? Tudo é relativo! TUDO e NADA, diz
Ó cientista. Querem que tu ladres
Como o teu Cão... não que rujas como um Leão ... E por que não? Servis,
Ambos, e o amor-instinto os faz compadres.
Mas que vida infeliz!

Tua carniça e carne envenenada estremeceram de ver-se
Um torrão, pedaço atirado pela chance,
Do Barro Universal; sem alicerce,
Sofrendo, se debatendo, e para quê? Pois que alcance
Dá o acaso e este barro a contorcer-se?
Mas que tolo romance!

Todas as Almas são, eternamente;
Cada uma única, singular, individual, ultimal.
Perfeita; cada faz-se um Véu da Mente
E carne, e assim celebra o seu bridal
Com outra Gêmea Máscara que sente
Amar de amor lustral.

Alguns, embriagados com seu sonho,
Não querem que ele finde, e se confundem
Com o jogo de sombras enfadonho.
Um astro então que chame os que se afundem
Na ilusão, e eles brilham no risonho
Lago da vida e fundem...

Tudo que começou não terá fim;
O Universo perdura porque É.
Portanto, Faze o que tu queres; sim
Todo homem e toda mulher são Anjos.
Ninguém morreu; Todos ainda vivem! Assim,
Quebra os grilhões e solte as amarras! De pé!

Ao homo sapiens venho, como número de um homem
Meu número XIII, Anjo de Luz; enrista
A Besta cuja Lei é Amor; pois tomem
Meu Amor sob vontade e vejam! - Crista
De Sol interna e não externa!... Olhe Mulher! Veja Homem!
Eis um Anjo à vista!


O Verme

Existe uma flor que encerra
Celeste orvalho e perfume.
Plantou-a em fecunda terra
Mão benéfica de um nume.

Um verme asqueroso e feio,
Gerado em lodo mortal,
Busca esta flor virginal
E vai dormir-lhe no seio.

Morde, sangra, rasga e mina,
Suga-lhe a vida e o alento;
A flor o cálix inclina;
As folhas, leva-as o vento,

Depois, nem resta o perfume
Nos ares da solidão...
Esta flor é o coração,
Aquele verme o ciúme.

Machado de Assis, in 'Falenas'

domingo, outubro 24, 2010


OCTOXXV

Sou um pântano escuro, inavegável, quieto,
Sem vida, sem amor, sem vibrações, sem lutas,
Trago dentro de mim um coração abjeto,
Torpe como o lençol das velhas prostitutas.

O spleen, dominador, vampírico, secreto,
Roeu-me da consciência as fibras impolutas.
Sou um pântano escuro, inavegável, quieto,
Como a hedionda paz das trevas absolutas...

Se esgotei os sonhos do imprevisto,
Se já não posso finalmente ter as sensações intensas agudas
Da virtude e do mal, por que é que ainda existo?

Sinto-me naufragar no horror das trevas mudas...
Quem me dera gemer no teu Calvário, ó Cristo!
Quem me dera sentir o teu remorso, ó Judas!


Noite Muda-Tenebrosa

Ó noite, ó noite, ó muda-tenebrosa!
Tu que lançaste o pecado
Sobre esta carne pútreda, asquerosa,
Envolve-a no teu manto constelado,
Ó noite, ó noite, ó muda-tenebrosa

No escuro observo os segredos infamantes
Dos crimes ensanguentados
Segredos que são guardados
Como se guardam diamantes;

Vejo os sonhos maus invisíveis,
Os desejos subterrâneos,
Os monstros incoercíveis
Que habitam nos nossos crânios;

As vesgas concupisciências
Atrozes, brutas, carnais,
E forte como as essências
E duras como os cristais;

Os pensamentos obscenos,
Os crimes dos homens sérios,
As tragédias dos venenos
E as farsas dos adultérios;


As mentiras, as traições
As fundas hipocrisias,
As lepras dos corações
E os vermes das fantasias;

Tudo isto, ó pessoas que no momento me parecem um padre,
Foi parar nos teus ouvidos,
Esgotos apodrecidos
Do enxurro da humanidade.

Gente de faces sanguíneas,
O ventre ignóbil, rotundo,
Vai contar as ignomínias
Que viste por este mundo
às larvas negras, impuras
Para quem as sepulturas
Não têm portas,
Ás larvas frias que são
A alma da podridão,
A vida das coisas mortas.


Ó noite, ó noite, ó muda-tenebrosa!
Vou contando de minuto em minuto, de hora em hora,
Não sei se fico ou vou embora!

Quanto mais imerso
neste contexto sombrio,
mais detesto,
mais calafrio.

Ó noite, ó noite, ó muda-tenebrosa!


terça-feira, outubro 19, 2010


A MORTE

Como o homem conhece mal a morte que ele teme
quando diz que o surpreende!
A morte nasce com ele, e sem cessar lhe exige
um tributo contra o qual protesta em vão o orgulho humano.
O homem começa a morrer muito antes da morte,
e morre aos poucos, imperceptivelmente.
O nome da morte que damos à última hora,
nada mais é do que o derradeiro golpe.

LA MORT

Que l'homme connoît peu la mort qu'il appréhende
quand il dit qu'elle le surprend!
Elle naît avec lui, sans cesse lui demand
un tribut dont en vain son orgueil se défend.
Il commence à mourir longtemps avant qu'il meure,
il périt en détail imperceptiblement;
le nom de mort qu'on donne à notre derniére heure
n'en est que l'acomplissement.


PRIMAVERA

A bela primavera faz nascer
tantos amores, quantas são as flores.
Tremei, tremei, jovens corações.
Mal começa a aparecer,
ela faz cessar as friezas;
mas a s doçuras que contém
caro vos custarão, talvez.
Tremei, tremei, jovens corações,
a bela primavera faz nascer
tantos amores, quantas são as flores.



PRINTEMPS

L'aimable printemps fait nâitre
autant d'amours que de fleurs.
Tremblez, tremblez, jeunes coeurs.
Dis qu'il commence à paroître,
it fait cesser les froideurs;
mais ce qu'il a de douceurs
vous coûtera cher peut-être.
Tremblez, tremblez, jeunes coeurs,
l'aimable printemps fait nâitre
autant d'amours que de fleurs.